O ANCIÃO E «A MOLEIRINHA»
Estava eu, no dia 18 do corrente, à volta de um prato de sardinhas assadas na brasa, quando se aproximou de mim um ancião, pediu licença pela interrupção, e perguntou-me se eu era aquele senhor que escrevia no jornal. Que lia sempre os meus artigos e tinha notado a minha ausência, nos últimos tempos. Que sim, senhor, era eu mesmo, gosto em conhecê-lo. Quem é?
Um pouco marreco, voz insegura, notoriamente mouco, olhar vivo e penetrante, sorriso desdentado, estava à minha frente uma carrada de anos em forma de homem muito magro e visivelmente de letras gordas.
Eu queria oferecer-lhe um livro. Sim, senhor, obrigado. E meio assustadiço, colocou-me ao lado do prato das sardinhas um opúsculo com o título «A MOLEIRINHA», capa decorada com uma pequena e tosca figura de barro, saída, seguramente, de um ignoto barrista que molda imagens à proporção da sua imaginação e engenho. Voltou a pedir desculpa pela interrupção e foi sentar-se numa mesa próxima. Ouvi-o pedir o almoço e vi o esforço da empregada para fazer-se ouvir a informá-lo dos pratos do dia.
Pela minha parte, enquanto as sardinhas iam perdendo a identidade reduzidas à espinha, enquanto os pimentos e os tomates perdiam a cores próprias e nacionais, desaparecendo do prato, congeminava sobre o título do opúsculo e do seu conteúdo. O título remetia-me para tempos idos da literatura portuguesa, outros títulos terminados em "inha", coisas do campo, e este autor, Joaquim Leandro da Silva, de tempos idos era e do campo também, seguramente. Dei uma espreitadela à ficha técnica. Veio ao mundo em 1922 e arrola no seu currículo mais dois livros: «As Memórias do Quim« e «Ana Rita», «uma espécie de romance«(sic).
O respeito pela velhice (eu nasci em 1939) e o reconhecimento pelo esforço titânico que aquele homem deve ter feito para passar a letra redonda impressa, o seu nome, os seus sonhos e as suas experiências de vida, impeliram-me a ir despedir-me dele, renovar os meus agradecimentos e dizer-lhe que ia ler o seu livro e escrever uma linhas, depois de tudo.
Ele, com a mesma voz insegura, o mesmo olhar penetrante, o mesmo sorriso desdentado, disse-me com toda a serenidade. «Com esta idade não preciso de publicidade. Mas faça o que entender». E acrescentou: «lembra-se daquele poeta principiante que um dia interpelou um grande escritor que estava à sombra de uma árvore e lhe pediu a opinião sobre os seus versos? O escritor estava a lê-los e um passarinho, aliviou-se lá do alto, borrando a poesia. Olhe, amigo, retorquiu o escritor, aquele passarinho, lá em cima, acabou de dar-lhe o parecer que me pediu». Esperou alguns segundos a observar a minha reacção e rematou: «esteja à vontade, esteja à vontade»
.E à vontade estou eu sempre quando me guio pelos ditames da consciência. Prometi que ia ler o «livro» e escrever umas linhas sobre ele. Cá estou a fazê-lo. Começa com um diálogo em discurso directo, sem qualquer enquadramento no espaço e no tempo. Entramos nele como quem entra num qualquer sítio onde duas pessoas conversam sobre algo que desconhecemos. E assim prossegue estruturalmente até ao fim, ainda que o assunto da conversa mude e mudem os protagonistas. É como se o autor, homem anoso, que presenciou transformações inesperadas no seu percurso da vida, assumisse o papel do avozinho que quisesse transmitir aos netos a sua mundividência, dar-lhes a conhecer as coisas do seu tempo. Não histórias de encantar, imaginadas, histórias da Carochinha, mas histórias reais vividas por si e pelas comunidades rurais de que ele fazia parte. Há mesmo um momento do diálogo em que o neto Julinho pergunta: «ó avozinho, vossemecê estudou medicina?». E a resposta veio pronta: «não, é a experiência da vida. Na altura em que me criei, as pneumonias tratavam-se com cataplasmas de linhaça e mostarda e, se não houvesse, punham-se pensos de água quente. Também se aplicavam ventosas».
«E o que são ventosas - perguntou a Francisquinha?». «São copinhos de vidro com a boca mais estreita que o fundo. Deitava-se umas gotas de álcool no fundo da ventosa, chegava-se o lume e punha-se sobre a parte dorida e dez minutos depois tirava-se. E também havia sanguessugas, que são uma lesma pequenina, que se conservam dentro de uma jarra de vidro e muda-se a água todos os dias. Aplicam-se em cima da parte dorida, elas começam a morder, chupam o sangue e passados dez minutos, para elas deixarem de morder, deixava-se cair uma gota de vinagre. Elas caíam para o lado, tinha-se cinza peneirada num prato, punham-se as sanguessugas sobre a cinza e elas vomitavam o sangue que tinham ingerido. Depois deitavam-se para uma tijela com água para ficarem lavadas e prontas para serem aplicadas quando fosse preciso. Nas aldeias o médico era o barbeiro, receitava purgantes, para a dor de cabeça receitava rodelas de batatas cruas para pôr na testa. Com a ponta de uma navalha fazia um pequeno corte na veia do braço e deixava escorrer sangue alguns minutos. Era assim o médico da aldeia».
E sem perder-me no enredo, sem grandes enredos, de «A Moleirinha», se eu desconhecesse a realidade nua e crua descrita por este ancião, este naco de informação chegaria para eu não dar perdido o tempo que gastei a lê-lo. É que nós aprendemos sempre algo com pessoas de outros tempos, seja lidando com elas ao vivo, seja estudando o passado próximo ou distante, através dos registos que nos deixaram, independentemente da sua qualidade formal. Valeu a pena. E não deixei que o passarinho, chilreando lá em cima da árvore, se consolasse a borrar-me a leitura. Fi-la em casa, ontem à tarde, estendido num sofá, a ouvir o Sol Mio de Pavaroti.