Dissemos que sim, senhor, e perguntámos se queria emparceirar connosco na refeição. Não se fez rogado. Que sim, senhores. «É para já». Acto contínuo abriu a bagageira do carro e tirou uma grade de garrafas de vinho caseiro, quinta sua, sita nas margens do Douro, concelho de Rezende. Colocou-a em cima da parede ao lado do nosso estendal e retornou ao carro para voltar com o farnel dele.
E foi um convívio inesquecível. Bem falante, extrovertido, ansioso de ser ouvido, deixámos que falasse. E falou. Ex-escrivão num tribunal do distrito, tinha-se aposentado por antecipação (sofria de hemorroidas) e dedicava-se agora à viniticultura. O copo de metal inox que o acompanhava, passante de palmo de altura, era uma relíquia que preservava do tempo militar, feito na marinha. Mal chegou, logo o encheu. E nós pensámos: “temos homem”.
Ouvindo dizer-lhe que ele tinha sido marinheiro e possuindo eu um canivete de igual proveniência, oferecido pelo meu irmão mais novo, Nuno Pereira de Carvalho, que nessa arma assentou praça e nela fez carreira até passar à reserva, eu, como quem não quer a coisa, exibi esse objecto ostensivamente, por forma que ele o visse. E eis que ele, fixando os olhos na navalha, me perguntou de supetão: “também foi da marinha?” Respondi que não e expliquei a razão daquele objecto estar na minha posse. E ele preveniu: “cuidado com ela, corta que nem uma navalha de barba”.
Estas palavras fizeram explodir uma incontida gargalhada. É que, uns dias antes, fatiando o meu primo, Manuel Carvalho Soares (meu parceiro de caçadas, longos anos) um salpição, eu tinha-lhe feito esse aviso. Mas, palavras ditas, já ele tinha um dedo mordido sem saber como. E a navalha prestou-se a desbobinar os tempos que esse desconhecido/conhecido passou sobre o mar salgado e no tribunal onde exerceu a profissão, muitos dos presos chegados ali por terem dado umas navalhadas, mas sempre alegando em sua defesa que fora o outro que se “encostara à navalha” e se cortara. Puro acidente.
Bebemos do vinho dele e fez questão de nos oferecer uma grade das garrafas que enchiam a espaçosa bagageira do Mercedes. Tinha lá mais, e uma delas destinava-se ao guarda da reserva. Foi como se nos conhecessemos de longa data. Conversámos, comemos, bebemos e combinámos fazer linha de caça numa próxima vez que nos encontrássemos. Ali mesmo, à hora do almoço.
Ao fim do dia, seguindo cada qual o seu destino, eu e o meu primo ficámos com a ideia de que ele, com Mercedes serra fora, grades de vinho na bagageira, era homem de teres e haveres e o seu ego falante o denunciava. Atitude muito própria de “novos ricos” ou pessoas que, a coberto da humildade, fazem gaudio de se mostrarem acima do mais comum dos mortais.
E, face a este exame, subjectivo certamente, combinámos pregar-lhe uma partida no próximo encontro. Foi assim. No dia de caça seguinte, ali estávamos os três dispostos a dar ao dente, à língua e às pernas, logo de seguida, para desfazer as calorias.
Aconteceu que, como já disse, tendo esse nosso amigo (lá se me foi o nome dele) feito a sua apresentação de Mercedes Benz, com aquelas grades de garrafas de vinho caseiro e contado maravilhas acerca do fio da navalha marinheira, a partida comsistiu em o meu primo incluir no farnel metade de presunto já rejeitado, ressequido, rijo que nem chifre de veado (vá lá saber-se porquê), com o propósito de ser ele a fatiá-lo com o canivete. E assim foi. Mas a navalha maravilha, lampeira a fatiar salpicões e a rasgar a pele de um dedo desprevenido, não ferrava fio no presunto. Como era paródia, não lhe demos tempo para pensar. O meu primo, Manuel Carvalho Soares, para emprestar mais humor à partida, foi à bagageira buscar um serrote que levara de propósito e disse-lhe: “amigo, este é para os cães e só vai a serrote”.
Rimo-nos a bom rir e a risada, segundo o brilho nos olhos dos cães estendeu-se até eles, logo que começaram a roer os nacos serrados. Ali ao lado corria um ribeiro.
Nunca mais nos vimos. Mas eu jamais esqueci este encontro e as pinceladas de realismo e de humor tão próprio de gente sã, que pisa a serra e desviando-se de um tojo, distingue um sargaço de uma urgueira.
E aqui o confesso, com a sinceridade de um crente ajoelhado frente ao confessionário em tempos de jubileu: arrumados os apetrechos da caça, privando-me os joelhos de calcorrear a serra como fazia há poucos anos, lembro, com saudade, estes pedacinhos de humanidade fundida na trindade “terra, homens e bichos”.
abílio/2018