Trilhos Serranos

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quarta, 19 dezembro 2018 13:44

CAÇA - CONVÍVIO INESQUECÍVEL

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VINHO E PRESUNTO

Serra da Nave. Arredores de Carapito, Moimenta da Beira. Anos 90 do século XX. Carro estacionado à beira do caminho, no acesso inclinado para um lameiro, abancámos no muro de vedação fronteiro. Mesa posta, farnel exposto pela parede adiante, parou junto de nós um Mercedes vermelho e o condutor, também caçador, cumprimentou-nos e fez a costumeira pergunta: “como vai isso? A manhã, correu bem?”.

 lebre-3 - REDDissemos que sim, senhor, e perguntámos se queria emparceirar connosco na refeição. Não se fez rogado. Que sim, senhores. «É para já». Acto contínuo abriu a bagageira do carro e tirou uma grade de garrafas de vinho caseiro, quinta sua, sita nas margens do Douro, concelho de Rezende. Colocou-a em cima da parede ao lado do nosso estendal e retornou ao carro para voltar com o farnel dele.

E foi um convívio inesquecível. Bem falante, extrovertido, ansioso de ser ouvido, deixámos que falasse. E falou. Ex-escrivão num tribunal do distrito, tinha-se aposentado por antecipação (sofria de hemorroidas) e dedicava-se agora à viniticultura. O copo de metal inox que o acompanhava, passante de palmo de altura, era uma relíquia que preservava do tempo militar, feito na marinha. Mal chegou, logo o encheu. E nós pensámos: “temos homem”.

Ouvindo dizer-lhe que ele tinha sido marinheiro e possuindo eu um canivete de igual proveniência, oferecido pelo meu irmão mais novo, Nuno Pereira de Carvalho,  que nessa arma assentou praça e nela fez carreira até passar à reserva, eu, como quem não quer a coisa, exibi esse objecto ostensivamente, por forma que ele o visse. E eis que ele, fixando os olhos na navalha, me perguntou de supetão: “também foi da marinha?” Respondi que não e expliquei a razão daquele objecto estar na minha posse. E ele preveniu: “cuidado com ela, corta que nem uma navalha de barba”.

Estas palavras fizeram explodir uma incontida gargalhada. É que, uns dias antes, fatiando o meu primo, Manuel Carvalho Soares (meu parceiro de caçadas, longos anos) um salpição, eu tinha-lhe feito esse aviso. Mas, palavras ditas, já ele tinha um dedo mordido sem saber como. E a navalha prestou-se a desbobinar os tempos que esse desconhecido/conhecido passou sobre o mar salgado e no tribunal onde exerceu a profissão, muitos dos presos chegados ali por terem dado umas navalhadas, mas sempre alegando em sua defesa que fora o outro que se “encostara à navalha” e se cortara. Puro acidente.

Bebemos do vinho dele e fez questão de nos oferecer uma grade das garrafas que enchiam a espaçosa bagageira do Mercedes. Tinha lá mais, e uma delas destinava-se ao guarda da reserva. Foi como se nos conhecessemos de longa data. Conversámos, comemos, bebemos e combinámos fazer linha de caça numa próxima vez que nos encontrássemos. Ali mesmo, à hora do almoço.

Ao fim do dia, seguindo cada qual o seu destino, eu e o meu primo ficámos com a ideia de que ele, com Mercedes serra fora, grades de vinho na bagageira, era homem de teres e haveres e o seu ego falante o denunciava. Atitude muito própria de “novos ricos” ou pessoas que, a coberto da humildade, fazem gaudio de se mostrarem acima do mais comum dos mortais.

E, face a este exame, subjectivo certamente, combinámos pregar-lhe uma partida no próximo encontro. Foi assim. No dia de caça seguinte, ali estávamos os três dispostos a dar ao dente, à língua e às pernas, logo de seguida, para desfazer as calorias.

Nave-caça - REDAconteceu que, como já disse, tendo esse nosso amigo (lá se me foi o nome dele) feito a sua apresentação de Mercedes Benz, com aquelas grades de garrafas de vinho caseiro e contado maravilhas acerca do fio da navalha marinheira, a partida comsistiu em o meu primo incluir no farnel metade de presunto já rejeitado, ressequido, rijo que nem chifre de veado (vá lá saber-se porquê), com o propósito de ser ele a fatiá-lo com o canivete. E assim foi. Mas a navalha maravilha, lampeira a fatiar salpicões e a rasgar a pele de um dedo desprevenido, não ferrava fio no presunto. Como era paródia, não lhe demos tempo para pensar. O meu primo, Manuel Carvalho Soares, para emprestar mais humor à partida, foi à bagageira buscar um serrote que levara de propósito e disse-lhe: “amigo, este é para os cães e só vai a serrote”.

Rimo-nos a bom rir e a risada, segundo o brilho nos olhos dos cães estendeu-se até eles, logo que começaram a roer os nacos serrados. Ali ao lado corria um ribeiro.

Nunca mais nos vimos. Mas eu jamais esqueci este encontro e as pinceladas de realismo e de humor tão próprio de gente sã, que pisa a serra e desviando-se de um tojo, distingue um sargaço de uma urgueira.  

E aqui o confesso, com a sinceridade de um crente ajoelhado frente ao confessionário em tempos de jubileu: arrumados os apetrechos da caça, privando-me os joelhos de calcorrear a serra como fazia há poucos anos, lembro, com saudade, estes pedacinhos de humanidade fundida na trindade “terra, homens e bichos”.

abílio/2018

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.