Teve por companheiros alguns colegas oriundos das «terras frias» do Barroso, filhos de lavradores remediados e abastados com os quais não podia competir nas extravagâncias mundanas de estudante. A diferença estava no tilintar das moedas que se agitavam, às vezes provocadoramente, nos bolos das batinas de uns e de outros. O som distinguia-os num instante: um tilintava «à terra fria», outro «à terra quente». Aquele tinha respaldo na manada de gado barosão, gado convertido em metal sonante nas feiras e talhos; este tinha respaldo da charrua puxada por machos a rasgar terras arrendadas e olivais aneiros, uns anos azeitona abundante a lambuzar lagares e noutros nem lágrima a aflorar no olho da almotolia de zinco.
Habituado à comida frugal caseira, produtos vários, couves, batatas, broa de milho e dos mais produtos agrícolas, nunca de encher barriga, mas de satisfazer o paladar, repugnavam-lhe as repetidas refeições de papas de «farinha de pau», enlatada, vinda não sabia de onde. Já não podia vê-las, nem cheirá-las, quanto mais comê-las. Aquelas papas mais lhe pareciam uma alimentação de frades mendicantes, a dizerem que sim a tudo o que podem meter no bornal, do que refeições dignas de abarrotar os ventres daqueles jovens aspirantes a sacerdotes, bispos, cardeais e sabe-se lá, Papas.
Um dia, por impulso próprio da idade, enjoado de tanta papa, pôs as mãos em concha, de costas para cima, sobre o prato, em sinal de rejeição, no momento em que era servido. O encarregado de pôr a comida no prato, não hesitou: despejou-lhe as colheradas nas costas das mãos. Papas a escaldar, o instinto natural fê-lo sacudir as mãos e a papa voou livre em redor. Alguma dela foi chapar-se nas «ventas» de quem o servia, colando-se nelas como argamassa saída da colher de um pedreiro experiente a rebocar paredes. Pronto, «o caldo estava entornado». E como se isso não bastasse, depois de usar o guardanapo a limpar o resto das papas dispersas, atirou-o janela fora.
Azar dos azares, na rua estreita, para onde dava a janela, passava, no momento, um polícia, com a sua farda de gala, preocupado em chegar a horas, no cumprimento do seu dever. O guardanapo empapado, com os efeitos que se conhecem de coisa que rasga os ares em queda livre, aninhou-se no boné que nem passarinho no ninho fofo. «Foi de propósito», pensou o agente da autoridade. Entrou no Seminário, mostrou a lástima em que ia e apresentou queixa. Quem foi o malandrete que tal fizera? Os responsáveis não tiveram dificuldade em somar dois e mais dois. Foi aquele indisciplinado, das Águas ao Revés. E toma lá que já almoçaste!
O pai foi informado dos princípios, nada promissores, do rapaz. Mas, com oito bocas lá em casa, pedia alguma tolerância. O moço assentaria e, quem sabe, para alegria da família e bem da Igreja, podia sair dali um pároco de aldeia, ou, um pregador capaz de derreter a serra do Marão em lágrimas, mal começasse a desbobinar a vida de Cristo, na romaria do Senhor dos Passos.
Mas, diz o povo que «o que torno nasce, tarde ou nunca endireita». E este seminarista, juntando a rebeldia natural à sua ingenuidade de camponês, ignorando, em absoluto, que os seus gestos e as sua palavras, os seus actos e pensamentos, como aliás os de todos os restantes colegas, eram esmiuçados a cada momento pelos vigilantes de serviço, somava umas atrás das outras.
Tinha por companheiro outro seminarista de «pinta» que veio a ordenar-se e a exercer o múnus em terras de Montalegre: seu nome Lourenço Fontes, aquele que, muitos anos mais tarde, veio a ser promotor, em Vilar de Perdizes, dos congressos e ajuntamentos de bruxas, bruxos, exorcistas, homeopatas, venda e compra de chás de plantas perdidas na serra, receitas de mezinhas caseiras, rezas e benzeduras para cura de maleitas e andaços desentendidos dos médicos ajuramentados por Hipócrates.
Os colegas puseram-lhe a alcunha de «Papa Sacana II» sem ofensa alguma para ele. Sempre brincalhão e bem disposto. Numa das festas em que foi o líder, nomeou o colega rebelde «guitarrista» da praxe. Este, sabendo isso, numa das incursões à terra natal, foi-se a um pinheiro de casca grossa, sacou dele uma carcódia com dimensões apropriadas e, canivete em acção, deu-lhe forma de um violino. O «fio norte» deu-lhe as cerdas e uma giesta o arco adequado. Em menos de um ai, estava ali um Stradivarius pronto a integrar uma orquestra a debitar repertório na Capela Sistina.
Só que ele não mediu bem as coisas. Em vez de ensaiar uma música com a letra da Ladainha dos Santos «kírie, eleison; Christe, eleison; Sancta Maria, ora pro nobis; Omnes Sancte Doctores, ora pro nobis; ab omni pecato, libera nobis; ab insidis diaboli, libera nobis; ab ira, et odio, et omni mala voluntate, libera nos»,, em vez disso ensaiou uma cantiga muito popular nos arraias da época: «ó mulher eu compro-te uma meias... isso não, isso não, maridinho que me faz as pernas feias... compra-me antes um litro de vinho, água fria faz-me mal, isso sim, maridinho, isso sim maridinho».
E não houve Ladainha dos Santos, que lhe valesse. Qual «ora pro nobis» qual carapuça Acabada a cena, em vez de ser premiado pela actuação e imaginação criativa, foi imediatamente chamado ao Reitor que o interpelou pelos caminhos andados, durante as férias, pois mostrava não andar por caminhos santos, dignos de um futuro sacerdote. Ali só havia farinha de pau «pro vobis» e, chegado a casa, expulso de vez, apanhou sova rija, foi pau em barda «pro nobis». Assim o quiseste, assim o tens. O pai colocou-lhe um saco de adubo vazio pendurado ao pescoço a descair para o peito e ordenou: vais apanhar feijocas, ali na horta, na hora do calor e só sais de lá quando o saco estiver cheio.
Ao tempo, em Trás-os-Montes, como em Portugal inteiro, o pai mandava e o filho obedecia. Um sol de por as raízes da urgueiras em brasa, torgas de fazer carvão para os ferreiros e ferradores ferrarem bestas nas forjas, tendas e alquilarias, suor a escorrer em bica, as feijocas a arredondar o saco, peso a curvar-lhe a espinha e a vergá-lo como velhinho carregado de anos, perdeu a paciência: em vez de ripar as feijocas e metê-las no saco, passou a meter a planta completa. Manápula aberta, puxada pela raiz e já esta, toca para dentro. O mando do pai era que só podia sair dali com o «saco cheio». Arranjou maneira de o encher mais depressa. Foi enquanto o «Diabo esfregou um olho». Mas de saco cheio estava o pai e encheu-o novamente de pancada. Mais pau «pro nobis». O rapaz era arrevesado, não tinha emenda. Fazia jus ao nome da terra onde nasceu: Fonte da Mercê, Águas de Revés, Vale Paços. Por mercê e vontade do pai, foi metido no seminário, mas de passos trocados constantemente, que fazer dele, com tal feitio?
Com o sétimo ano do Seminário, apenas equivalente ao quinto dos liceus comuns, para efeitos de emprego público, havia que arranjar uma saída. E esta, por desistência do progenitor, encontrou-a através do irmão mais velho, que diligenciou para ele entrar no Colégio Brotero, Foz do Douro. E para lá foi recambiado. À porta, uma quadra com sabor a António Aleixo:
Pão e lume nesta casa
Pão e lume, porque não?
Também a ciência é brasa
E o saber também é pão
Foi admitido, fez os exames necessários e saiu dali com as equivalências pretendidas. Seguiu-se o estágio de ingresso nas Finanças e como nada se fazia sem cunhas, teve de alombar com um peru vivo às costas até à moradia do Chefe a Repartição. Admitido, a cumprir o horário completo sem remuneração, foi o início de uma carreira, não sem cumprir primeiro o serviço militar na Guerra Colonial. Após esse dever pátrio, toca a cirandar por terras de Portugal, até se aposentar do serviço.
Mas não pensem que morreu o seminarista rebelde. Aposentado da função pública, ainda hoje lhe brilham os olhos a relembrar esse rol de ingenuidades que o puseram fora da carreira sacerdotal, para desgosto dos pais, pois, qual não era a família camponesa, curtida pelo frio do inverno, pelo sol das eiras e pelos calos da enxada, que não gostava de ver um dos seus membros vestido de batina e cabeção ao pescoço, a passear-se rua fora, a botar sermão em cima de um púlpito, ou sentado num confessionário a ouvir os «pecados do mundo», a absolvê-los de limpo e de pronto, ou obrigando o pecador a rezar uns tantos padres-nossos e ave-marias? Não fui padre, pelos desígnios de Deus. Podia ter chegado a Bispo.
Interrompi a narrativa e atirei-lhe: «olhe lá, este cozido à portuguesa está uma maravilha. Bem surtido, carnes fumadas, arroz, batatas, couves, bem temperado, nada mau, nada mau. E do vinho, cor purpurada, nem se fala!
- «Divinal, divinal, ou isto ou aquela papa de farinha de pau que me davam no Seminário. Fui expulso, mas podia ter chegado a Bispo!
Falta só dizer o seu nome:
- JOSE HENRIQUE CORVEIRA FERRADOR