Trilhos Serranos

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quinta, 11 julho 2013 21:33

EU PODIA SER BISPO

Escrito por 
A PENA A PENA ABÍLIO

A SUA VIA SACRA

Saído das berças sitas nas «terras quentes» de Mirandela, gerado no útero de onde saíram, espaçados a compasso das estações do ano,  mais sete irmãos, entenderam os pais que o caminho daquele rebento, escola primária feita, seria o Seminário de Vila Real (somente Seminário, sem distinção de Menor ou Maior) onde, no dizer do actual homem adulto inconformado por ter sido expulso, se «entrava porco e saía salsicha», pronta para entrar no mercado.

 

Bispo-FálicoTeve por companheiros alguns colegas oriundos das «terras frias»  do Barroso, filhos de lavradores remediados e abastados com os quais não podia competir nas extravagâncias mundanas de estudante. A diferença estava no tilintar das moedas que se agitavam, às vezes provocadoramente, nos bolos das batinas de uns e de outros. O som distinguia-os num instante: um tilintava «à terra fria», outro «à terra quente». Aquele tinha respaldo na manada de gado barosão, gado convertido em metal sonante nas feiras e talhos; este  tinha respaldo da charrua puxada por machos a rasgar terras arrendadas e olivais aneiros, uns anos azeitona abundante a lambuzar  lagares e noutros nem lágrima a aflorar no olho da almotolia de zinco.

Habituado à comida frugal caseira, produtos vários, couves, batatas, broa de milho e dos mais produtos agrícolas, nunca de encher barriga, mas de satisfazer o paladar, repugnavam-lhe as repetidas refeições de papas de «farinha de pau», enlatada, vinda não sabia de onde. Já não podia vê-las, nem cheirá-las, quanto mais comê-las. Aquelas papas mais lhe pareciam uma alimentação de frades mendicantes, a dizerem que sim a tudo o que podem meter no bornal, do que refeições dignas de abarrotar os ventres daqueles jovens aspirantes a  sacerdotes, bispos, cardeais e sabe-se lá, Papas.

Um dia, por impulso próprio da idade, enjoado de tanta papa, pôs as mãos em concha, de costas para cima, sobre o prato, em sinal de rejeição, no momento em que era servido. O encarregado de pôr a comida no prato, não hesitou: despejou-lhe as colheradas nas costas das mãos. Papas a escaldar, o instinto natural fê-lo sacudir as mãos e a papa voou livre em redor. Alguma dela foi chapar-se nas «ventas» de quem o servia, colando-se nelas como argamassa saída da colher de um pedreiro experiente a rebocar paredes. Pronto, «o caldo estava entornado». E como se isso não bastasse, depois de usar o guardanapo a limpar o resto das papas dispersas, atirou-o janela fora.

cáliceAzar dos azares, na rua estreita, para onde dava a janela,  passava, no momento, um polícia, com a sua farda de gala, preocupado em chegar a horas, no cumprimento do seu dever. O guardanapo empapado, com os efeitos que se conhecem de coisa que rasga os ares em queda livre, aninhou-se no boné que nem passarinho no ninho fofo. «Foi de propósito», pensou o agente da autoridade. Entrou no Seminário, mostrou a lástima em que ia e apresentou queixa. Quem foi o malandrete que tal fizera? Os responsáveis não tiveram dificuldade em somar dois e mais dois. Foi aquele indisciplinado, das Águas ao Revés. E toma lá que já almoçaste!

O pai foi informado dos princípios, nada promissores, do rapaz. Mas, com oito bocas lá em casa, pedia alguma tolerância. O moço assentaria e, quem sabe, para alegria da família e bem da Igreja, podia sair dali um pároco de aldeia, ou, um pregador capaz de derreter a serra do Marão em lágrimas, mal começasse a desbobinar a vida de Cristo, na romaria do Senhor dos Passos.

Mas, diz o povo que «o que torno nasce, tarde ou nunca endireita». E este seminarista, juntando a rebeldia natural à sua ingenuidade de camponês, ignorando, em absoluto, que os seus gestos e as sua palavras, os seus actos e pensamentos, como aliás os de todos os restantes colegas, eram esmiuçados a cada momento pelos vigilantes de serviço, somava umas atrás das outras.

Tinha por companheiro outro seminarista de «pinta» que veio a ordenar-se e a exercer o múnus em terras de Montalegre: seu nome Lourenço Fontes, aquele que, muitos anos mais tarde, veio a ser promotor,  em Vilar de Perdizes, dos congressos e ajuntamentos de bruxas, bruxos, exorcistas, homeopatas, venda e compra de chás de plantas perdidas na serra, receitas de mezinhas caseiras, rezas e benzeduras para cura de maleitas e andaços desentendidos dos médicos ajuramentados por Hipócrates.

Os colegas puseram-lhe a alcunha de «Papa Sacana II» sem ofensa alguma para ele. Sempre brincalhão e bem disposto. Numa das festas em que foi o líder, nomeou o colega rebelde  «guitarrista» da praxe. Este, sabendo isso, numa das incursões à terra natal, foi-se a um pinheiro de casca grossa, sacou dele uma carcódia com dimensões apropriadas e, canivete em acção, deu-lhe forma de um violino. O «fio norte» deu-lhe as cerdas e uma giesta o arco adequado. Em menos de um ai, estava ali um Stradivarius pronto a integrar uma orquestra a debitar repertório na Capela Sistina.

via SacraSó que ele não mediu bem as coisas. Em vez de ensaiar uma música com a letra da Ladainha dos Santos «kírie, eleison; Christe, eleison; Sancta Maria, ora pro nobis; Omnes Sancte Doctores, ora pro nobis; ab omni pecato, libera nobis; ab insidis diaboli, libera nobis; ab ira, et odio, et omni mala voluntate, libera nos»,, em vez disso ensaiou uma cantiga muito popular nos arraias da época: «ó mulher eu compro-te uma meias... isso não, isso não, maridinho que me faz as pernas feias... compra-me antes um litro de vinho, água fria faz-me mal, isso sim, maridinho, isso sim maridinho».

E não houve Ladainha dos Santos, que lhe valesse. Qual «ora pro nobis» qual carapuça Acabada a cena, em vez de ser premiado pela actuação e imaginação criativa, foi imediatamente chamado ao Reitor que o interpelou pelos caminhos andados, durante as férias, pois mostrava não andar por caminhos santos, dignos de um futuro sacerdote. Ali só havia farinha de pau «pro vobis» e, chegado a casa, expulso de vez, apanhou sova rija, foi pau em barda «pro nobis». Assim o quiseste, assim o tens. O pai colocou-lhe um saco de adubo vazio pendurado ao pescoço a descair para o peito e ordenou: vais apanhar feijocas, ali na horta, na hora do calor e só sais de lá quando o saco estiver cheio. 

Ao tempo, em Trás-os-Montes, como em Portugal inteiro, o pai mandava e o filho obedecia.  Um sol de por as raízes da urgueiras em brasa, torgas de fazer carvão para os ferreiros e ferradores ferrarem bestas nas forjas, tendas e alquilarias, suor a escorrer em bica, as feijocas a arredondar o saco, peso a curvar-lhe a espinha e a vergá-lo como velhinho carregado de anos, perdeu a paciência: em vez de ripar as feijocas e metê-las no saco, passou a meter a planta completa. Manápula aberta, puxada pela raiz e já esta, toca para dentro. O mando do pai era que só podia sair dali com o «saco cheio». Arranjou maneira de o encher mais depressa. Foi enquanto o «Diabo esfregou um olho». Mas de saco cheio estava o pai e encheu-o novamente de pancada. Mais pau «pro nobis». O rapaz era arrevesado, não tinha emenda. Fazia jus ao nome da terra onde nasceu: Fonte da Mercê, Águas de Revés, Vale Paços. Por mercê e vontade do pai, foi metido no seminário, mas de passos trocados constantemente, que fazer dele, com tal feitio?

Com o sétimo ano do Seminário, apenas equivalente ao quinto dos liceus comuns, para efeitos de emprego  público, havia que arranjar uma saída. E esta, por desistência do progenitor, encontrou-a através do irmão mais velho, que diligenciou para ele entrar no Colégio Brotero, Foz do Douro. E para lá foi recambiado. À porta, uma quadra com sabor a António Aleixo:

Pão e lume nesta casa
Pão e lume, porque não?
Também a ciência é brasa
E o saber também é pão

vinhoFoi admitido, fez os exames necessários e saiu dali com as equivalências pretendidas. Seguiu-se o estágio de ingresso nas Finanças e como nada se fazia sem cunhas, teve de alombar com um peru vivo às costas até à moradia do Chefe a Repartição. Admitido, a cumprir o horário completo sem remuneração, foi o início de uma carreira, não sem cumprir primeiro o serviço militar na Guerra Colonial. Após esse dever pátrio, toca a cirandar por terras de Portugal, até se aposentar do serviço. 

Mas não pensem que morreu o seminarista rebelde. Aposentado da função pública, ainda hoje lhe brilham os olhos a relembrar esse rol de ingenuidades que o puseram fora da carreira sacerdotal, para desgosto dos pais, pois, qual não era a família camponesa, curtida pelo frio do inverno, pelo sol das eiras e pelos calos da enxada, que não gostava de ver um dos seus membros vestido de  batina e cabeção ao pescoço, a passear-se rua fora, a botar sermão em cima de um púlpito, ou sentado num confessionário a ouvir os «pecados do mundo», a absolvê-los de limpo e de pronto,  ou obrigando o pecador a rezar uns tantos padres-nossos e ave-marias? Não fui padre, pelos desígnios de Deus. Podia ter chegado a Bispo.

  Interrompi a narrativa e atirei-lhe: «olhe lá, este cozido à portuguesa está uma maravilha. Bem surtido, carnes fumadas, arroz, batatas, couves, bem temperado, nada mau, nada mau. E do vinho, cor purpurada, nem se fala!

- «Divinal, divinal, ou isto ou aquela papa de farinha de pau que me davam no Seminário. Fui expulso, mas podia ter chegado a Bispo! 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.