A plateia sapateia de contente, mas não, os actores, atentos às "deixas" que o ponto (mas que grande ponto!) lhe sopra por debaixo do estrado, prosseguem a narrativa da sua necessidade em palco, pois sem eles é o dilúvio, é o anunciado fim do mundo.
Cansado da monótona lengalenga, um vaqueiro, pouco crente em dilúvios bíblicos e fins do mundo, aproveitando o impasse, tido como intervalo, levanta-se da plateia, sobe para o estrado, vence os sete arrepelões que lhe ferraram à entrada e já que as coisas lhe estavam a calhar, aspecto rústico, cordas vocais treinadas, chamamentos a ecoarem de monte em monte, cajado de Abraão na mão, bradou: "vão todos bardamerda, o auto acabou".
2 - A RÉCITA
Parece-se ser oportuno não sair tão lampeiro do palco, pois a récita continua. E cabe aqui lembrar um "aperto" em que me vi, especado no estrado, quando tinha os meus 14 ou 15 anos de idade, por descuido da pessoa encarregada de "correr o pano".
Aconteceu que na minha aldeia de Cujó, os homens adultos da terra, em combinação com o pároco da freguesia, mobilizavam a juventude para o teatro nas longas e frias noites e inverno, à luz do "patromax" e das mais candeias em uso. Energia eléctrica, nem cheirá-la! E foi assim que, em meados do século XX, palco improvisado na escola primária, na residência paroquial e noutras casas particulares, foram levadas à cena a "Bandeira Roubada" (de cariz nacionalista e patriótico), o "Julgamento de um Crime" (com destaque para o papel dos tribunais do reino) e o "Filho Pródigo" (de cariz religioso e moral). Em todas elas participei, puto ainda, mas era opinião dos organizadores que não me saí nada mal dos papeis que me foram confiados.
E passando a imodéstia, nessas circunstâncias e idade, a tantos anos de distância, lembro-me que, fazendo uso da imaginação criativa (que parece não me ter abandonado, de todo) sugeri ao meu pai, para preencher um dos intervalos da récita, com um sketch, cujos intervenientes era eu e o meu cão Piloto. Uma cadeira no meio do palco, cortina escancarada, plateia no escuro, entrávamos os dois, eu sentava-me, começava a dedilhar uma flauta feita de cana e, aos seus "glus...glus..., respondia o cão com uivos lancinantes, prolongados, tons vários, focinho virado ao tecto, uivos a lembrar simultaneamente choro e o canto, tipo fado que virou património imaterial de Portugal, coisa que ele fazia todas as vezes que, na serra, me acompanhava na guarda do gado e eu, sem saber música, me entretinha a soprar e a dedilhar esse rústico instrumento musical.
A nossa actuação, bem me lembro, foi um sucesso. E a expressão "o que esquece ao Diabo lembra aos rapazes" foi a que mais brindou a ideia de eu ter posto um cão em palco, coisa jamais vista, jamais esperada. E passariam ainda muitos anos até que as TVs se lembrassem de levar aos seus programas e/ou exibir nas suas pantalhas, os artistas de quatro patas, sobretudo camelos e burros.
Isto para dizer que correu tudo bem. A representação do duo valeu pelo insólito, pela novidade, pela imaginação e tal foi o impacto e encanto que a pessoa encarregada de fechar o pano, se esqueceu da sua função e me obrigou improvisar uma saída airosa, sem a plateia se aperceber do aperto da minha situação:
- Pronto, Piloto, o nosso papel chegou ao fim. É tempo de outros entrarem em palco e a récita prosseguir com assunto mais sério. Acabou a tua e a minha música sem letra, improvisadas, na certeza de que tu nunca chegarás a lobo ibérico e eu jamais chegarei a Rão Kiau, o mestre da flauta. Por onde andaria, ao tempo este artista?
É isso, nos palcos da aldeia, nos palcos da vida, nos palcos da política, nos palcos da comunicação social (o Facebook é um deles) ou se representa bem e se leva a sério o papel distribuído, ou há que ter uma saída airosa, deixar o sketsh de brincadeira e dar lugar a assuntos mais sérios.