Trilhos Serranos

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domingo, 07 julho 2013 20:59

TEATRO

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1 -AUTO DO VAQUEIRO

 Pavoneando-se no palco do país, os protagonistas que todos conhecemos, desunham-se para convenceram a plateia que são insubstituíveis e que a farsa  está para ficar e durar. Sem eles é o fim do mundo.

A plateia não acredita nisso, apupa-os, dá pateadas no soalho, exibe cartazes mandando-os para a rua. Face ao pateado,  um deles, muito a custo, bate em retirada, reconhecendo em testamento, feito no seu juízo perfeito e "atempadamente", que não podia continuar no auto, pois não acertava uma no papel que lhe foi distribuído. Com "gag" atrás de "gag"  deixou o lugar vago que foi imediatamente ocupado por alguém especialista em finanças, que não podia alegar virgindade nos contratos "swaps". Foi então que, num repente, outro dos protagonistas, sabido que se farta,  habituado a contorcionismos vários, bateu com a porta, recusando-se a representar ao lado de tal figura. A triste figura. Foi o aqui d'el Rei. Era o fim da farsa. 

A plateia sapateia de contente, mas não, os actores, atentos às "deixas" que o ponto (mas que grande ponto!) lhe sopra por debaixo do estrado, prosseguem a narrativa da sua necessidade em  palco,  pois sem eles é o dilúvio, é o anunciado fim do mundo. 

Cansado da monótona lengalenga, um vaqueiro, pouco crente em dilúvios bíblicos e fins do mundo, aproveitando o impasse, tido como intervalo,  levanta-se da plateia, sobe para o estrado, vence os sete arrepelões que lhe ferraram à entrada e já que as coisas lhe estavam a calhar, aspecto rústico, cordas vocais treinadas, chamamentos a ecoarem  de monte em monte, cajado de Abraão na mão, bradou: "vão todos bardamerda, o auto acabou".

2 - A RÉCITA 

Parece-se ser oportuno não sair tão lampeiro do palco, pois a récita continua. E cabe aqui lembrar um "aperto" em que me vi, especado no estrado, quando tinha os meus 14 ou 15 anos de idade, por descuido da pessoa encarregada de "correr o pano".

Aconteceu que na minha aldeia de Cujó, os homens adultos da terra, em combinação com o pároco da freguesia, mobilizavam a juventude para o teatro nas longas e frias noites e inverno, à luz do "patromax" e das mais candeias em uso. Energia eléctrica, nem cheirá-la! E foi assim que, em meados do século XX, palco improvisado na escola primária,  na residência paroquial e noutras casas particulares, foram levadas à cena a "Bandeira Roubada" (de cariz nacionalista e patriótico), o "Julgamento de um Crime" (com destaque para o papel dos tribunais do reino) e o "Filho Pródigo" (de cariz religioso e moral). Em todas elas participei, puto ainda, mas era opinião dos organizadores que não me saí nada mal dos papeis que me foram confiados. 

E passando a imodéstia, nessas circunstâncias e idade,  a tantos anos de distância, lembro-me que, fazendo uso da imaginação criativa  (que parece não me ter abandonado, de todo)  sugeri  ao meu pai, para preencher um dos intervalos da récita, com um sketch, cujos intervenientes era eu e o meu cão Piloto. Uma cadeira no meio do palco, cortina escancarada, plateia no escuro, entrávamos os dois, eu sentava-me, começava a dedilhar uma flauta feita de cana e, aos seus  "glus...glus..., respondia  o cão com uivos lancinantes, prolongados, tons vários, focinho virado ao tecto, uivos a lembrar simultaneamente choro e o canto, tipo fado que virou património imaterial de Portugal, coisa que ele fazia todas as vezes que, na serra, me acompanhava na guarda do gado e eu, sem saber música,  me entretinha a soprar e a dedilhar esse rústico instrumento musical. 

A nossa actuação, bem me lembro,  foi um sucesso. E a expressão "o que esquece ao Diabo lembra aos rapazes" foi a que mais brindou a ideia de eu  ter posto um cão em palco, coisa jamais vista, jamais esperada.  E passariam ainda muitos anos até que as TVs se lembrassem de levar aos seus programas e/ou exibir nas suas pantalhas, os artistas de quatro patas, sobretudo camelos e burros.

Isto para dizer que correu tudo bem. A representação do duo valeu pelo insólito, pela novidade, pela imaginação e tal foi o impacto e encanto que a pessoa encarregada de fechar o pano, se esqueceu da sua função e me obrigou improvisar uma saída airosa, sem a plateia se aperceber do aperto da minha situação:

- Pronto, Piloto, o nosso papel chegou ao fim. É tempo de outros entrarem em palco e a récita prosseguir com assunto mais sério. Acabou a tua e a minha música sem letra, improvisadas, na certeza de que tu nunca chegarás a lobo ibérico e eu jamais chegarei a Rão Kiau, o mestre da flauta. Por onde andaria, ao tempo este artista?

 É isso, nos palcos da aldeia, nos palcos da vida, nos palcos da política, nos palcos da comunicação social (o Facebook  é um deles) ou se representa bem e se leva a sério o papel distribuído, ou há que ter uma saída airosa, deixar o sketsh de brincadeira e dar lugar a assuntos mais sérios.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.