HISTÓRIA COM GENTE DENTRO
Delfim era o seu nome. Em Castro Daire e arredores, gente de pé descalço ou de sapato, senhoras e senhores, todos o conheciam assim. Fotógrafo de profissão, morava no Largo do Espírito Santo, sítio também designado "Feira das Galinhas", por ser ali que, em dias de feira, eram vendidos esses animais de pena.
Quem conhecia as suas condições de habitabilidade não lhe invejava a sorte. Espaço com uma porta para o largo, a sua casa, assim para o comprido, assemelhava-se mais a uma mina de volfrâmio a furar a serra, do que à moradia de um cidadão a residir na sede do concelho, em meados do século XX. Sem água canalizada nem saneamento, tal como as demais na vila, os dejetos eram lançados na rua e ele, todas as manhãs, para se espreguiçar e fazer as suas lavagens matinais, recorria ao fontanário público de pistão, levantado perto da sua porta.
E sendo certo que onde as condições higiénicas são poucas, abundante se torna a fauna do costume, parasitária, indesejável e incomodativa, aquela que ainda hoje chega às nossas escolas. Na serra, o camponês, habituado a vê-la solitária ou em ninho por tudo quanto era prega de saia ou costura de calça, eternizou-a, não sem bastante malícia, na quadra popular: o piolho e mais a pulga, foram para a serra lavrar, o piolho lavra fundo, a pulga pincha pró ar".
Homem baixo, a atirar para o forte, descuidado no trajar, bexigoso de cara, cabeleira à Einstein, de poucas falas, bem me lembro dele nas suas idas a Cujó a fazer pela vida, tal como ia às restantes aldeias do concelho, em dias de festas e romarias.
Fotógrafo artilhado com as tecnologias do seu tempo (anos 50 do século XX), abria o saco pessoal que transportava às costas ou num burro (não sei se seu, se emprestado) fixava um CAIXOTE munido com um capuz num tripé, punha no chão, por perto, uma bacia com líquido e eis um minilaboratório fotográfico pronto a fazer o retrato de quem quisesse. Era só os interessados porem-se a jeito com indicações suas...mais para aqui, mais para ali....assim está bem.
Com o olho do caixote a mirtar o alvo a fotografar, mão lesta na tampa da lente, fixa o cliente e... «olha o passarinho!». Não se ouvia o "clic" que identifica equipamentos afins posteriores. Habituado a trabalhar em dias de sol ou de nuvens, ele tirava a tampa e logo a repunha, calculando o tempo de exposição do negativo, pela intensidade da luz.
Era o tempo da foto «à lá minute» e eu, pequeno ainda, ficava-me, por perto, encantado a ver tudo aquilo. Para mim ele era um MÁGICO, o primeiro que vi na vida. E a magia era feita quando ele se metia com os ombros, braços, mãos e a cabeça no capuz. O que é que ele faria ali dentro, com quem falaria às escondidas para, logo depois, esticar o fole da máquina e, de seguida, colocar à sua frente, colado numa pequena tábua ao alto, um retângulo de papel, repetir o gesto e só depois disso, à vista de toda a gente, mergulhar numa bacia o mistério da sua arte?
Era só um instantinho. Os retratados, saídas daquela câmara escura, começavam a aparecer no papel emerso muito lentamente. Para mim, que não perdia pitada, criança inocente, aquilo se não era bruxaria, era milagre. Sacudidas e secas, as fotografias não tardavam a passar das mãos papudas do bruxo/milagreiro para as mãos dos retratados. E eles a mirar e a remirar as suas figuras tão encantados quanto eu.
Foi essa imagem de profissional que guardei até que vim a saber, já adulto, em Castro Daire, que ele, além de fotógrafo, era também pintor. Sem espaço doméstico próprio, o Largo do Espírito Santo (exceto em dias de feira quinzenal) era o seu "ateliê". Ali levantava o cavalete e estendia as telas. Depois com paleta e pincéis nas mãos, toca a fazer cópia "naif" de fotografias tiradas previamente ou a desenhar e pintar figuras saídas da imaginação de momento. E se em Cujó eu o considerava um MÁGICO, MÁGICO o consideravam também as crianças da vila que assistiam ao momentos das suas criações. E não foram poucas, hoje todas adultas, que me contaram os momentos dos seus encantos.
Já algumas vezes me referi esporadicamente à sua pessoa e à sua arte. Mas, tal como fiz com o Manel da Capucha (pedinte andarilho) com o Zeca Carneiro (factotum) com o Mateus (engraxador), com o Zapa (bate-chapas) e até com o Geraldo, de Tete (guarda-fios sertanejo) todos eles pessoas humildes e singulares, com a sua carga de artistas e excentricidades, mas sem fama de se lhes colar às mãos bens alheios (como acontece hoje com certos senhores engravatados), eu devia-lhe uma crónica exclusiva, ainda que tenham sido todos eles (e não só), «versos sem rima» que me levaram a escrever o seguinte texto, junto de uma ÁRVORE SECA:
Em meu redor
Um mundo de poesia e cor.
Poesia não escrita
Não falada, não dita
Não canónica, desarmónica
Sem métrica de antologia,
Mas poesia é!
Mil olhos me lêem,
Porém, só dois vêem
Que morri de pé.
Seca,
Raízes fincadas no chão
Neste poema de cor e vida
Que me rodeia
A perder de vista,
Mirada de baixo a cima,
Sei que sou da composição
O verso sem rima.
Agosto/2012
Mas voltando ao Delfim Fotógrafo, além da tela que aqui reproduzo, cópia fiel de uma fotografia que nos mostra o antigo Jardim Público e mais toda a encosta poente do CALVÁRIO, conheci mais duas telas suas, em estado irrecuperável. Ambas tinham um cavalo ao centro. Penduradas numa parede, a humidade e o desleixo do proprietário encarregaram-se de lhes dar fim. Da minha parte, nem valeu a pena fotografá-las, mas esta, em bom estado, encaixilhada e enquadrada na objetiva da minha câmara fotográfica, aqui está como documento histórico de uma profissão e de uma vida. No momento de fotografá-la pareceu-me possuir um pouco da MAGIA possuída por esse feiticeiro andante, quando eu era pequeno. Ao divulgá-la, mais não pretendo do que prestar HOMENAGEM a um homem humilde que veio para Castro Daire desterrado (dizem que pelo crime de falsificar moedas) e por cá ficou, até morrer. A ele se deve grande parte das fotos que por aí circulam hoje no FACEBOOK, sobre Castro Daire, não sendo, portanto, eticamente correto sobrepor-lhe a nossa linha de água pessoal, como se delas fossemos autores. E dele é também a foto postada na antiga carta de condução de velocípedes com motor do senhor Narciso Martins Pinto, do Forno da Serra, sempre pronto a contribuir para a história da sua terra e das suas gentes.
E vejam só o que lhe reservou a sorte macaca. Vivendo toda a vida num tugúrio urbano sem água canalizada nem saneamento básico, quando, nos anos 80 do século XX, se começaram rasgar as ruas e a abrir as valas para isso em frente de sua «casa», ele, já bastante idoso e pesado, caiu numa delas e, em resultado da queda, foi transportado numa ambulância para o Hospital de Viseu, dando-se na viagem um trágico acidente. Nele, o senhor Delfim, o MÁGICO da minha infância, disse adeus ao mundo. Morreu um ARTISTA e ninguém falou nisso.
O dever do ofício, que é não omitir os resultados da investigação, impõe-me dizer, neste momento da narrativa, que as minhas pesquisas não me conduziram somente aos APELIDOS que juntava ao seu nome, mas também aos seus HÁBITOS SOCIAIS. E foi-me relatada, por pessoas idóneas, uma “excentridade” digna de nota, para a época. O senhor Delfim, a páginas tantas da sua vida, adquiriu um leitão, fez dele um animal de estimação, treinou-o e fazia-se acompanhar por ele quando ia ao CAFÉ SANTOS – às QUATRO ESQUINAS - tomar a bebida costumeira. Ele, o TARECO, pois esse nome deu ao suino, tal qual um cão, ficava à porta esperando que o dono saísse e lhe fizesse companhia, de retorno a casa. As organizações defensoras dos animais que atualmente estão enquadradas no tecido legal e social português, eram coisas do porvir. E fazer de um porco “animal de estimação”, coabitar com ele no mesmo espaço, era uma “excentricidade” que, tal como outras, só eram toleradas ao senhor Delfim por ele ser quem era. Um artista, um cidadão prestável nas artes mecânicas, nomeadamente no arranjo das máquinas de costura SINGER. Esses seus préstimos e aquela sua maneira de ser e de estar contribuíram, seguramente, para que a comunidade vilã, altamente conservadora, ipso facto, avessa inovações bisonhas, fizesse vista grossa, mas não sem os dichotes próprios de uma comunidade que ainda hoje dá mostras de não ter interiorizado o “respeito” por tudo o que é “diferente”, na política, religião, cor e hábitos que escapam aos modelos tradicionais. E a alcunha «TIO NEM», empresta, ainda hoje, um sorriso e significado pejorativo a alguns dos meus informantes.
Nos aposentos de Delfim Moreira Dias não havia saneamento básico, como disse acima, nem se exibiam animais exóticos como vemos hoje em dia nas televisões em programas especializados que ligam o homem e a natureza. Não se exibiam cães e gatos de qualquer raça. Não se exibiam répteis, nem furões fofinhos e irrequietos. Não se exibia o célebre “porquinho de India” aninhado num qualquer sofá de veludo em habitação burguesa. Nos aposentos deste fotógrafo «à la minute» conviviam muitos desses animais apenas unidos porelos de afetos naturais. Jamais por exibição. Por isso ele era um homem singular, diferente, fora do seu tempo e, sabe-se lá, se era no meio de toda essa bicharada que ele encontrava o conforto e a aceitação que, de soslaio, lhe dispensava a selva humana que o rodeava.
Já algumas vezes me referi esporadicamente à sua pessoa e à sua arte. Mas, tal como fiz com o Manel da Capucha (pedinte andarilho) com o Zeca Carneiro (factotum) com o Mateus (engraxador), com o Zapa (bate-chapas), digamos com todos eles pessoas humildes e singulares, com a sua carga de artistas e excentricidades, mas sem fama de se lhes colar às mãos bens alheios, como acontece hoje com certos senhores engravatados.
Este «fotógrafo à lá minute» teve a vida a morte que acima referi. Não se falou mais nele. Estou eu a fazê-lo hoje, mesmo que tardiamente, como é próprio dos historiadores e de todos os que deixam «pegada» no mundo, como foi o caso de António Argentino, de Reriz, que se deu ao cuidado de enriquecer o seu MUSEU PRIVADO com o «caixote» usado por Felfim Moreira Dias no exercício do seu múnus. A ele se deve a pintura «naif» que vemos abaixo (primeira parte) baseada numa foto mostrando o jardim público e a encosta do Calvário. A mesma que, fazendo uso do computador, utilizei para estender o ESCADÓRIO do Jardim até à CAPELINHA, engenho que não teve nenhum dos nossos autarcas, urbanizadno a «CERCA DE DENTRO» e impossibilitando que tal obra se fizesse. Castro Daire ficou mais pobre.
Abílio/abril/2017