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sábado, 12 março 2016 22:13

CASTRO DAIRE - CASA BRASONADA DOS MENDONÇAS - 1

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Aqui há um bom par de anos fui abordado por um senhor, de Arcas, que se dizia herdeiro da casa que foi do ferrador João da Cruz, protagonista no romance «Amor de Perdição» de Camilo Castelo Branco.

Ele tinha intenção de recuperar o edifício e com vista a «turismo rural». Como os responsáveis pelo licenciamento disso e correspondentes subsídios a atribuir para o efeito lhe tivessem solicitado o «histórico» da casa, pedia-me para eu o ajudar nessa tarefa, já que me sabia envolvido na pesquisa e divulgação da História Local. 

Não satisfiz o seu desejo e informei-o de que não tinha nada em mãos que fundamentasse historicamente o que se dizia no romance, fazendo-lhe ver a diferença entre história e obra de ficção.(*)

Mendonça-1Nessa altura tinha eu publicado o meu romance histórico «Julgamento» e tinha bem presentes as perguntas que me fizeram sobre os protagonistas, os sítios e moradas deles, esses frutos da minha imaginação e criatividade..

Gente impreparada para distinguir, em arte, a realidade da ficção, traziam-me à lembrança a atitude daquela criança que, nos anos 50 do século XX, em Cujó,  assistindo à peça de teatro «Julgamento de um Crime», no colo da mãe,  peça em que um dos protagonistas era assassinado em palco gritou: «ai que mataram o meu tio».    Por tudo isto e por saber também que no «Amor de Perdição» o arrieiro amigo de Simão Botelho lhe dissera que tinha um «amigo a um quarto de légua da cidade de Viseu», o tal João da Cruz, ferrador, e que Arcas ficava a uma distância muito maior da cidade, não se me afigurava verosímil dar crédito histórico àquela afirmação. Arcas fica muito mais perto de Castro Daire, a vila onde o romancista colocou a residência permanente do morgado Baltazar Coutinho. Outra fantasia, como veremos. O projecto de turismo rural não foi por diante, não assentou arraiais na aldeia de Arcas, mas arraial assentou em minha biblioteca um caderninho de formato 15x10 centímetros, encadernação agrafada de um «Folhetim» que julgo ter sido publicado em rodapé de página do jornal «Primeiro de Janeiro», em 1936, da autoria Visconde de Valdemouro, ou seja, Manuel Albuquerque Branco de Melo, dito descendente dos Marqueses de Alegrete e Penalva, e estes ligados aos Albuquerques de Viseu, que não a Tadeu de Albuquerque, outro dos protagonistas do romance camiliano.  O Visconde de Valdemouro, joeirando o romance e servindo-se de outros estudos camilianos já publicados, procura separar a realidade histórica da ficção e chega a virar do avesso os principais protagonistas da obra, ascendentes de Camilo Castelo Branco. Memdonça-2O autor, no sentido de os reabilitar, vestiu-os de valores éticos, sentimentais e morais, quando na verdade, segundo os documentos, eles eram realmente figuras pouco recomendáveis. O Visconde, partindo sempre de documentos para fundamentar a sua argumentação, no que respeita ao Morgado de Castro Daire, Baltazar Coutinho, é peremptório: «quanto a Baltazar Coutinho, de Castro Daire, suposto rival de Simão Botelho e assassinado por este, nada consta nos «Nobiliários». E acrescenta: «Existiram, nos séculos XVI e XVII, em Castro Daire, uns ascendentes dos Albuquerques de Viseu, que mais tarde estabeleceram residência em Lisboa: foram os Condes de Castanheira. Coutinhos e Baltazares Coutinhos, só se os houver agora, mais de um século passado após a morte de Simão Botelho». E mais adiante: «São tantas e tão grandes as fantasias, com aparências das realidades descritas por Camilo no seu «Amor de Perdição, que sou levado a concluir que, desde a primeira à última linha do seu maravilhoso romance, não há um só facto verdadeiro, se excetuarmos a prisão do seu tio e a sua condenação ao degredo ? que não por ter assassinado o pseudo rival Baltazar Coutinho que nunca existiu?»  Relativamente a João da Cruz, reportando-se ao autêntico Simão Botelho e seu carácter belicoso e provocador, jovem que trazia a cidade de Viseu em alvoroço, afirma: «Simão Botelho leva um cúmplice, não o ferrador João da Cruz, que só existiu na mente de Camilo, mas um outro seu companheiro de estúrdia, chamado José Jerónimo do Loureiro e Seixas».  Concluindo: para quem, no concelho de Castro Daire, sempre confundiu romance com história e vice-versa, lá se foi o João da Cruz e o Baltazar Coutinho. Sendo eles frutos da imaginação e criatividade de Camilo, as suas certidões de nascimento e de óbito só podem ser encontradas no cartório mental do autor de tão prestigiado e lido romance. E, como é bom de ver, em Castro Daire, a literacia também passa por aqui. 

(*) JOÃO DA CRUZ=JOÃO DA SILVA

M. Lourenço Mano, no seu livro "Entre Gente Remota, Crónicas e Memórias históricas de Moçambique", editado no ano de 1962,  com a chancela da "Minerva Central, de Lourenço Marques", em resultado das diligentes pesquisas, concluiu que o ferrador João da Cruz, referido por Camilo no "Amor de Perdição" é tão somente o João da Silva, ferrador, de Armamar, que foi degredado para Moçambique, em 1858, para cumprir pena de quinze anos de presídio, por morte de homem. Cidadão de mau feitio, zaragateiro, esfaqueou até à morte um "macua" às portas da fortaleza de S. Sebastião, na ilha de Moçambique,  pelo que foi desterrado para o presídio do Bazaruto. Evadiu-se de lá, refugiou-se em Sena, onde casou com uma degredada por ter evenenado o marido. E por ali viveu até morrer a negociar escravos, marfim e ouro. (pp. 73-79)

NOTA. transportado do antigo site, onde permanece alojado

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.