Trilhos Serranos

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domingo, 28 fevereiro 2016 10:21

LEGISLADORES, CREDORES E DEVEDORES

Escrito por 

NO MINÉRIO TRABALHAVA, TRABALHA...TODOS GANHAVAM SÓ EU NÃO GANHAVA NADA...


No pós-guerra a febre do volfrâmio não deixou as gentes da serra.
O meu pai, a viver em Cujó, negociava em minério e um dia, ao cair da noite, dois supostos amigos seus da vila de Castro Daire, vindos de Almofala, dado o adiantado da hora, diziam, pediram-lhe para pernoitarem em nossa casa. Outros tempos em que sendo as distâncias curtas, longas as tornavam os difíceis acessos, carreiros e caminhos existentes.

 Hospitaleiro e confiante, o meu pai, ignorando os intuitos maléficos dos falsos amigos, deu-lhes a ceia e pô-los a dormir na casa onde guardava os sacos do minério em trânsito, algum dele retido ali por motivo de baixa de preço e aguardar a subida. Meteu as raposas no galinheiro. Eles, que levavam fisgada a presumível fuga ao fisco, fizeram uma estimativa a partir dos sacos existentes e o meu pai viu-se acusado nas Finanças por não declarar o volume de negócio que exercia. Resultado? Foi lhe aplicada uma multa baseada nos supostos " lucros de guerra". Era pagar e não bufar. Sem dinheiro e sem os tais "lucros" o meu pai foi forçado a contrair uma dívida junto dos bancos, sacando dinheiro num e amortizando noutro, durante anos seguidos, já que os escassos "mil réis" que rendiam os cabritos, os leitões e os vitelos que se criavam lá em casa, não chegavam para os juros.

Difícil situação essa!

De banco em banco, dívida arrastada no tempo, acabou por ficar sem crédito na praça. Em palpos-de-aranha, sem remendo para tapar o buraco da roupa rasgada, Sete filhos em casa, lembrou-se de um amigo que tinha em Campo Benfeito. Talvez ele lhe pudesse valer. E valeu.

Uma dia, manhã cedinho, disse-me para acompanhá-lo. Eu teria os meus 12 ou 13 anos de idade. «Vais à loja das cabras, espremes um teto para o púcaro, bebes e vamos, para não ires em jejum». Assim fiz. Descalço, suponho que roto e esfarrapado, andarilho, metemo-nos a caminho. Ele, de cartucheira à cinta, arma a tiracolo, rumámos à Relva, Vale Abrigoso e Mezio. Aí parámos na taberna que existia à beira da estrada que liga Castro Daire/Lamego e emborcámos meio quartilho de vinho, assim mesmo, sem lastro no estõmago. «É para ajudar a subir a serra».

Campo Benfeito, a aldeia do nosso destino, ficava na vertente oposta. Subimos e chegámos. Os deuses estavam com o meu pai. No cimo da aldeia, à beira do povoado, havia uma eira e foi lá que eu vi, naquela idade e pela primeira vez, medas de feno a céu aberto. Nessa eira estava o senhor que o meu pai procurava. Claro que eu não sabia dos propósitos do meu pai, nem entendi nada da conversa deles. Sei é que, quando acabaram de falar e regressámos ao ponto de partida, o meu pai parecia outro. Vim a saber depois que esse SENHOR, cujo nome me escapa (a memória nos atraiçoa quando não devia) aceitou ser seu FIADOR do meu pai, num dos BANCOS DE LAMEGO.

E vim, também, depois a associar a nossa romagem aquela aldeia e o encontro com aquele senhor (pequenino de físico, mas grande na sua bondade) à conversa que constantemente ouvia a minha mãe a carpir-se anos seguidos "ai se me vejo livre destas dívidas".

Talvez por isso, de tanto a ouvir e ver mortificada, durante a minha vida inteira fugi dos Bancos como o Diabo foge da cruz. Assim sendo, pergunto-me por que Diabo é que o Governo me confisca parte do vencimento e subsídios a que tenho direito por anos de trabalho e de sacrifício, para pagar dívidas que não contraí e, bem pelo contrário, elas resultarem da má gestão dos próprios bancos e se deverem a ladrões encartados que, gravitando em torno da alta política e da alta finança, se abotoaram a seu jeito e em família, sem ninguém lhes ir à mão?  


BASTA! Vendo-me envolvido e grego numa situação para a qual não fui havido nem achado, nesta democracia que reivindica as suas raízes na velha Atenas, vejo-me obrigado a evocar Solon, o legislador, e as leis em que ele declarou nulas todas as dívidas que atribuiu à usura dos credores, aquelas que libertaram os camponeses e outros devedores de tais encargos. 


Pois, se ele isso fez com "dívidas contraídas", ó Solon ressuscita, vem meter tudo nos eixos, vem anular as dívidas que eu e tantos outros portugueses não contraímos. Vem meter na cadeia todos aqueles que levaram as FAMÍLIAS e o ESTADO ao estado a que chegou. Vem, ressuscita, faz isso, já que tal não fazem os nossos legisladores, aqueles para quem, consoante as suas conveniências e as dos amigalhaços de partido, no articulado de uma lei tanto vale a preposição "de" como a sua contracção com a artigo definido "a". "DE" e "DA", o que casa bem com a postura "de" pessoas que se servem "da" democracia, em vez "de" servi-la.



NOTA: postado no Facebook em 28/02/2013

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.