Hoje, na cronologia do tempo que foge, já lá vão tantos anos, vi-me nos meados do século XX, naquela idade de sonhos e de vida pela frente. Mais precisamente, no ano de 1950. Ao fim do dia, nós, os pastorinhos-escolares, descíamos com o gado por aquele caminho de cabras que ligava a aldeia de Cujó ao Boi Alvo, monte ali para os lados da Bica Grande, perto da Fonte Costa que viria, muito mais tarde, a fornecer a água canalizada à povoação.
A meio caminho, depois de passar o estreito onde confluíam as águas vinda do Vale da Fraga, ali, ao lado do carreiro, muros de pedras soltas encavalitadas umas sobre as outras vedavam lameiros e terras de cultivo, estas últimas conquistadas à encosta e retidas por cómaros de suporte, ao longo dos quais se levantavam, resistentes aos frios da região, os CARANGUEJEIROS, árvores de pequeno porte assim designadas na região, mas que, na verdade, eram aquelas que produziam a ameixa conhecida por "rainha-cláudia", aquele fruto de caroço de forma arredondada e cor verde-amarelo-rosa quando maduro, distinto das ameixas oblongas cor de vinho-lilás que também por ali havia. Rainha Cláudia, ali, em terras curiosamente designadas Cunha dos Reis.
O algazarra da rapaziada, o som da chocalhada e campainhada de mistura com o balir de cordeirinho ou do cabritinho "mé...mé....mé..." em busca da progenitora e vice-versa, eram, a bem dizer, a costumeira sinfonia pastoril que se ouvia por ali ao fim de cada dia, de verão ou de inverno, antes do Sol deixar de alumiar aqueles montes e vales, que estavam a anos-luz, da luz eléctrica. Assim, anos seguidos, geração após geração. Mas, naquele fim de tarde algo destoante se juntou à orquestra. Eram os gritos de duas mulheres à bulha, "ele é meu...ele é meu!" porque torna e porque deixa, ali, nas leiras da rainha-cláudia, a ameixa plebeia e serrana acostumada aos codos e geadas. Mulheres habituadas a fazer uso das mãos, musculatura exercitada no manejo das enxadas e dos teares, puxavam-se mutuamente os cabelos e, guedelhando (verbo bem apropriado), desfaziam uma à outra as tranças que, por cultura e tradição local de penteado, se enroscavam na nuca em forma de rodilha: "ele é meu...ele é meu!", porque torna e porque deixa. Puxa-que-puxa, elas caiam, levantavam-se "ele é meu...ele é meu! eis que, durante a briga (a ocasião faz o ladrão) não faltou quem saltasse o muro, subisse às árvores e enchesse a barriga e o bornal de ameixas. As donas esgadanhavam-se, arrepelavam-se, feriam-se e ofendiam-se com impropérios pouco aconselháveis aos meninos ou meninas de coro citadinos, mas frequentes e ordinários nos meios rurais, ignorantes da linguagem cuidada, onde a palavra "puta" não era ofensiva à ovelha tresmalhada, mas ofensa grave à mulher desonrada. E de palavrões e de rainhas-cláudias foi uma barrigada. O caso era que aquelas fêmeas em luta, de idade próxima, eram apenas duas das quatro mulheres que, na aldeia, se deixaram ir na lábia de um jovem da terra que, tendo passado uns tempos em Lisboa, à terra retornou com a lição estudada. Afoito foram quatro, mas bem podiam ser oito. Não havia moça que lhe resistisse. Nas arruadas era o que melhor cantava o fado, nos bailes o que tinha melhor pé de dança e o polimento da cidade, uma espécie de brasileiro de torna viagem, fizera-lhe trocar o burel do costume por fato e gravata, salpicadas com água de cheiro. Ele era o "ai Jesus" das moças da aldeia habituadas que estavam ao cheiro do bode e ao estrume das terras. Em todas elas fez um filho e todos eles foram meus amigos ou colegas de escola.
Ele era o Manel da Laura, o Zé da Rebola, o Fernando Canário e o João Laurindo. Todas as pessoas da minha geração conheceram os protagonistas desta minha narrativa. Escrevo-a por imperativo de cidadania e experiências de vida. Era o tempo das mães solteiras, de filhos de pais incógnitos, mesmo que conhecidos fossem o pais. As obrigações e as responsabilidades da paternidade, que é delas? Isso eram coisas do porvir. Por entre sargaçais e brenhas, punham-se raparigas prenhas e desde que ela fosse de maior idade, paria, punha um filho no mundo e pronto. A mãe que o criasse e o pai continuava na "boa-vai-ela", sem nada de pior.
As coisas só lhe corriam mal se a moça engravidada tivesse um pai ou um irmão que, de pau de racha em punho, salvasse a honra da casa e chamasse a contas o aventureiro com as arrochadas merecidas. Quando isso acontecia ele, como se tivesse asinhas, ia pregar para outra freguesia e lá faria uso do hissope noutras caldeirinhas.
Aquelas moças, já mulheres feitas no meu tempo de criança, tanto quanto é da minha lembrança, sem um pai e sem um irmão, tipo Malhadinhas, ficaram com os filhos nos braços e criaram-nos. Que remédio! Foram todos meus amigos e creio que já faleceram. Dedico-lhes estas linhas, em memória da nossa amizade.
O Manel da Laura chegou mesmo a contracenar comigo num dos intervalos de uma peça de teatro que foi levada à cena em Cujó, numa daquelas noites longas de inverno à luz de patromax.
Fruto da minha criatividade e imaginação, simulámos ser dois comerciantes ambulantes de panos. Metemos no palco um burro carregado de trapos. O palco tinha uma porta ao nível da rua e o burro, que morava na loja da frente, foi só sair de uma porta e entrar noutra. Foi um sucesso e tanto. Para o espectador um espanto. Estavam longe os tempos da televisão e da apresentação de animais em palco. Veio a tornar-se corriqueiro, mas, nessa arte, em Cujó, fui o primeiro.
Abílio/fevereiro/2016