«Se recuarmos às décadas de 20,30,40 e 50 do século passado, décadas de má memória, se habitarmos no norte do concelho de Castro Daire e se precisarmos de artigos de mercearia ou peças de vestuário e demais coisas ligadas à sobrevivência, por certo nos dirigimos a Mouramorta, a pé, a cavalo, ou em cima de um carro de vacas. Aí vamos encontrar a resposta às nossas necessidades. Primeiro, no estabelecimento comercial de José Morgado e, depois, no de Vicente Fernando Saraiva da Fonseca.
Os livros de «fiados» destes dois comerciantes são tratados de economia, de sociologia, de história de gentes rurais, carenciadas de tudo.
Reportando-me a um «rol» do primeiro comerciante que abrange os anos de 1928 a 1939, ficamos a saber que, além de dinheiro emprestado a juros a alguns clientes, os produtos mais consumidos, ao tempo, em todas as aldeias serranas, como bem o demonstram os «aviamentos» dos clientes que dessas aldeias se iam abastecer naquela loja, iam desde «pente de alisar», o «pentes de caspa», que o povo sabia bem tratar-se de «pentes para piolhos».
A clientela, sendo a sua maior parte de Mouramorta, estendia-se por outras aldeias do concelho e fora dele, a saber:
Feirão, Mazes, Picão, Codessais, Lamelas, Campo Benfeito, Bigorne, Cotelo, Dornas, Rossão, Vale Abrigoso, Vilar, Mezio,Vila Pouca, Custilhão, Colo de Pito, Monteiras, Carvalhas, Relva e Cujó. Um cliente de Cujó era José Pereira Basílio. O livro regista o seguinte, relativamente ao ano de 1933 e 1939: «comprou fazendas no valor de 69$50, 2 metros de riscado= 6$00; 2 tubos de linhas= 3$00; resto da conta atrasada= $20; bacalhau= 1$30; e em Agosto de 1939, pagou de juros de mora 15$00».
Algumas notas dizem-nos «já fizemos contas», outras «transporte do borrão», outras, junto à mercadoria fiada no mês de Março dizem «até às vindimas». Ouras «a seis meses». Uma, referida a Avelino Tomé diz «despesa do enxoval»= 32$70.
Nestes estabelecimentos vendia-se de tudo, a saber:
1- Bordados e costura: linhas, rendas, retrós, dedais, botões, agulhas, linhagem, alfinetes, colchetes, molas, fazendas, riscado, pano cru, serrobeco, popelina, cotim, chita, flanela, entretela, zefire, tecido de forro, gabardina, nastro, fantasia, lenços de crepe, lenços de seda, saiote, caxemira, armur, colete, bretanha, fustão, pano de lenços, xailes, pano para avental, gorgorina, amazona, lenços de crepe, lenços de sedalina, elásticos, mescla, meias, lã.
2 - Mercearia: café, açúcar, macarrão.
3 - Calçado: tamancos, brochas, sapatilhas, socas.
4 - Construção: pregos, brochas, chumbo, chumbadouros fechaduras, dobradiças.
5 - Iluminação: petróleo, pedras de isqueiro, carboneto, gasómetros.
6 - Utilitários: guarda-sóis, boinas, chapéus de pano, lenços de cabeça, lenços merinos, lenços de assoar.
7 - Objetos de cozinha: facas, garfos.
8 - Limpeza: sabão.
9 - Escrita: cadernos de papel, papel de carta e lápis.
Concluindo não faltava ali nada. Até a pedrinha de isqueiro, objecto que só se podia usar com licença do governo.
Todos os clientes eram devidamente identificados com o nome próprio. Homens e mulheres. De tantos, só uma mulher merecia antepor «Dona» ao seu nome. Era D. Ermelinda Amélia Alves d?Almeida. Mas se ela se distinguia pelo registo da identificação, era igual a todos os outros no tocante a produtos consumidos. Tal como eles, às suas compras de mercearia, macarrão, arroz e petróleo, juntava produtos ligados ao fabrico de vestuário. Todos eles. E, como nem todos os clientes seriam alfaiates e costureiras, ainda que muito se costurasse em cada casa, certo seria que compravam ali os tecidos, linhas, botões, etc. para depois mandarem à costureira e ao alfaiate a fim destes executarem a obra.
E à malha do «fiado» não escapava o pároco local, Pe. João Ferreira César Dória, que, no ano de 1930 ali deixou a soma de 595$00, distribuídos pelos mais diversos produtos domésticos. Desde «petróleo» a «tecidos», de «brochas de estrela», a «café e chá»* e «um pão de sabão», desde «um caderno de papel» a «1/2 arroba de arroz» de uma assentada só. Custou 18$80. Mais tarde chegaria o Pe. José Augusto Monteiro, que neste ano de 2007 ronda os 90 anos de idade. E, tal como o seu velhinho e histórico «skoda» imobilizado, há muito, na garagem, quer morrer na aldeia. Dele voltarei a falar mais adiante.
O «café e o chá» não entravam no «rol» de todos os clientes. Muitos deles só o cheiravam, certamente, quando se deslocavam à loja para levar «fiado» «macarrão», ou «bacalhau» ou «petróleo».
cf. Também Facebook novembro 2015