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sexta, 21 março 2014 14:45

TRIBUNAL DE CASTRO DAIRE (13)

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DA FICÇÃO À REALIDADE

PARA UMA MELHOR JUSTIÇA (13)

 9- TESTEMUNHAS (2)

 9.1 – A LIÇÃO

 Depois do tribunal estar mais do que informado, através dos depoimentos das testemunhas, que a «eira da Dona Nazaré»  devia «caminho e rego», como se alegou na petição inicial, para o «logradouro e quintal», sitos nas traseiras da minha casa, caminho e rego usados pelos AA e seus antecessores, directamente ou por terceiros, sem quaisquer obstáculos, os advogados mandatários dos RR persistiam em saber, pela boca das testemunhas arroladas pelos AA, se tinham visto passar por ali «professor Abílio».

Acórdão-usucapião-1-2Já vimos o sabonete que a Dona Maria José, pessoa de poucas letras, deu a uma jurista encartada, isto é, à advogada da ré esposa, Drª Joana Sevivas, quando esta insistia que lhe dissesse o número de vezes. Que tinha visto «sim senhora», mas não tinha contado as vezes, por isso não sabia e nem adivinhava sequer se «questã» iria parar ao tribunal, senão «tinha-as contado». Resposta onde vi o assentimento implícito da Magistrada ao dizer-lhe que se adivinhasse «levaria um caderninho e tomaria nota, não era?».
Claro que subjacente a estas teimosas perguntas estava a tentativa de obtenção de prova em tribunal de que, embora por ali passassem as pessoas que, com consentimento meu, utilizavam o logradouro e quintal nas traseiras da minha casa, eu, professor, ligado à caneta e não à enxada, virado para a escola e não para o campo, como proprietário que era não passava por ali e, em consequência, adeus direito de «usucapião» reivindicado nos autos.

A tal respeito, a moeda saiu furada a ambos os mandatários dos RR. É que se a mandatária da Ré pôs o enfoque no «número de vezes» que me viram ali passar, o mandatário do Réu, apesar da testemunha, Leonel Ferreira, antigo proprietário da moradia, ter dito, repetidamente, que 90% da serventia daquela casa se fazia por ali, indagava o porquê de se passar pela «eira» e não pela frente. As respostas saíam prontas e convictas: por ali era mais perto, mais funcional, mais directo.

Os dois mandatários viram goradas as suas tentativas na primeira instância. Mas insistiram na segunda, recorrendo. O caminho escolhido estava errado, pois mesmo que as testemunhas não me tivessem visto lá passar (que não foi o caso) quem demonstrou, juridicamente fundamentado, que a via escolhida para obtenção dessa prova estava errada, foi o Meritíssimo Juiz Desembargador, relator do acórdão saído do Tribunal da Relação do Porto.

Já referi antes o saber e a perspicácia deste magistrado patente no tocante ao conhecimento dos «usos e costumes» rurais. Magistrado cuja sabedoria, seguramente, o obriga a levantar os olhos do enrodilhado símbolo do parágrafo único, (dois «S» entrelaçados) e a olhar a vida, a cultura e a história com gente dentro, nas suas múltiplas formas se ser, funcionais e humanas, num mundo sempre em mudança. E isto bem pode servir de exemplo a muitas pessoas que (juristas e não juristas) nos meus 74 anos de vida feitos já conheci. Pessoas que, agarradas a um parágrafo único, incapazes de estabelecerem a sua conexão com outro e muito menos com a vida, nem se dão conta, tantas vezes, do desfasamento das leis com a vida real e, teimosamente, se agarram ao enrodilhado parágrafo que lhes enche o olho técnico e dali não saem. É assim e mais nada. É assim, pois assim o diz o artigo tal e o parágrafo tal do código tal.

No que respeita às motivações e objectivos dos advogados dos RR, inquirindo se eu passava ou não passava pela eira, eis a magistral lição do Meritíssimo Juiz Desembargador do Tribunal da Relação do Porto. Para não falhar palavra na transcrição, uso dois excertos do acórdão, em PrtScn, acima e ao lado.

E eu aqui deixo essa lição para que ela sirva a quem de direito, aos que servem o Direito ou que do Direito se servem, sempre no ensejo de que nos nossos tribunais se faça «UMA MELHOR JUSTIÇA».

(continua)

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.