INTRÓITO
Desde tenra idade, tanto quanto me lembra, sempre me interpelei sobre a mecânica da “relojoaria cósmica”. E, então, o que mais podia fazerr um menino da aldeia, sem luz elétrica, mergulhada na escuridão, senão contemplar o Sol a rodar no Céu, durante o dia, naquela sua trajetória milenar, e, de noite, a Lua e as estrelas, pontos luminosos sem conta, a furarem o manto azul celeste daquela abóbada gigante, algumas delas a fazerem negaças comigo, num estranho jogo das escondidas, ora mostrando-se, ora escondendo-se e outras, incandescentes, “estrelas cadentes”, a rasgarem o céu em direção à terra lindas de ver, mas carregadas de medo, pois bem podiam rasgar-me da cabeça aos pés, se chegassem ao chão?
PRIMEIRA PARTE

Por força do trabalho do campo (na época ignorava-se o conceito de “trabalho infantil”) a minha observação sideral, movida por uma ânsia de saber sem medida, começava cedinho. Pés descalços, chão orvalhado ou geado, muito antes do nascer do sol, aproveitando a fresca, os meus irmãos ou sozinho, levávamos os gados para os montes e lameiras, íamos segar os fenos e os fieitos para as forragens de inverno, alimentos dos animais, nossos irmãos de trabalho e sobrevivência. E no firmamento as estrelas íam-se apagando sem pressas. Mas, já com muitas delas desaparecidas, uma havia que mantinha a sua luminosidade, qual parteira disposta a ajudar no parto do astro-rei, prestes a sair de barriga da noite, prenhe de medos, sortilégios e bons conselhos. Era a ESTRELA DA MANHÃ, a ESTRELA D’ALVA, a mesma estrela que, à tardinha mudava o nome para ESTRELA DA TARDE. E sempre acordada e vigilante, sobrepunha a luz da sua lanterna todas as outras, disposta a zelar e aconchegar o sono do SOL que, 12 horas antes, ajudou a nascer.
Muitos anos depois de toda estas minhas observações nesses tempos de criança, juvenude, puberdade e conjeturas siderais sem respostas, com alguns ensimanentos do meu pai feitos de permeio, depois de toda esta minha curiosidade e aprendizagem de escoteiro de aldeia, impressionado com aquela “relojoaria cósmica” a rodar dia e noite - coisa eterna - vieram os conhecimentos de Ptolomeu, Copérnico e Galileu. Mais os livros e o tempo que eles gastaram a falar do Sistema Solar, da Terra e do Céu. Mais a discordância entre eles - o geocentrismo e o heliocentrismo. Mais a prisão e as agruras que Galileu padeceu nos cárceres da Inquisição impostas pelos ZELADORES DAS ESCRITURAS. Ele e o seu pensamento as contradiziam. Não podia ser.
Mas deixemos o saber ACADÉMICO, o saber dos TEÓLLOGOS, as verdades REVELADAS e as VERDADES EXPERIMENTADAS, as VERDADES CIENTÍFICAS e voltemos ao campo, à planície, à serra, ao espaço de gente de pé descalço, de pé no chão ou de bota caneleira, de bota cardada, tamancos, à terra de pastoreio e de semeadura, ao convívio de gente divorciada das LETRAS e deixemos, em LETRAS, o diálogo travado entre o “ar” e o “chão” (a terra) falando sobre um caminheiro, um almocreve ou romeiro, que, “pedibus calcantibus”, passou a vida a romper os quilómetros de distância que separava o ponto de partida, do ponto de chegada. O tempo em que já tinham sido remetidas para os museus da HISTÓRIA, as “sandálias” dos Celtas, Celtiberos, Lusitanos e as “caligae” romanas e sucedâneas medievais deram lugar ao calçado corrente nos meados do século XX.

Nesse tempo, num dos caminhos carreteiros que faziam a rede viária entre Vila Pouca e Castro Daire, um almocreve parou as bestas que conduzia carregadas com a mercancia do seu labor, fez um cigarro de barba de milho, chegou-se junto de um cavalo, dobrou-lhe a pata esquerda pelo joelho e, na ferradura virada ao ar, prateada, luzidia pelo desgaste, escolhido o ponto adequado, ao jeito de quem martela (ver vídeo em rodapé) bateu com uma torrinha de quartzo que tirou da jaqueta, chispando na direção de um trapo queimado previamente guardado num objeto de bolso. Após várias tentativas, forma primitiva de fazer fogo, a faísca pôs o trapo em brasa. O almocreve acendeu o cigarro, deixou que o membro do animal voltasse à posição do costume. E toca a andar. Após o que, vindo dos seus pés, pareceu chegar-lhe aos ouvidos o seguinte diálogo:
Ar - Que belos botas traz hoje quem passa, quem nos mantém puídos e vivos a rasgar estes montes e vales?
Chão - Como assim? A pessoa vai descalça, tu não vês que a sua pegada fica marcada no pó da minha pele como o selo pendente de carta régia a conferir o direito de portagem ao senhorio destas terras, paga por toda a mercadoria - carga maior, carga menor ou costal - que transita de concelho para concelho?

E longo foi o diálogo e teima entre estes DOIS dos QUATRO ELEMENTOS que, desde o século V a.C, na teoria do filófoso Empédocles, se defende que tudo o que existe, do átmo ao universo infinito, mecanismo visto e não visto, do presente e do porvir, conjunto ou disperso, pensamento posto em prosa ou em verso, deitado ou de pé, disforme ou conforme a imaginação e a ciência, contituído é pelos QUATRO ELEMTENTOS, a saber: o ar, a água, o fogo e a terra.
O andarilho prossegui o seu caminho fumando o seu cigarro de barba de milho e cada qual dos interlocutores - ar e o chão - teimava na sua e cada um deles na sua se ficava, convencidos da sua verdade evidente.
E o caso era que ambos tinham razão. A sola dos sapatos tinham ficado de tal modo gastas pelos quilómetros andados que o “chão” via a planta dos pés sem proteção o “ar”, que via os pés calçados, dizia o cnontrário.
Tudo porque o caminheiro, habituado a andar descalço a vida inteira, perdera há muito a sensibilidade nas plantas dos pés. Havia muito que elas se tornaram mais duras do que sola batida na bigorna do sapateiro antes da sua aplicação. Vida rural. Gente camponesa. Gente de trabalho. Gente de negócio. Gente sem LETRAS, mas aqui lembrada nas minhas LETRAS por estes caminhos andados.
SEGUNDA PARTE
Com muitos anos de vida, alguns deles passados “abaixo do Equador”, no hemisfério sul, a ver o meu mapa celeste substituído por outro, a ver o apagamento da Ursa Maior, da Ursa Menor e Estrela Polar a darem lugar ao CRUZEIRO DO SUL e o SOL tomar a posição norte ao meio dia e, aparentemente, a rodar no sentido contrário aos ponteiros de um relógio, diferentemente da minha experiente observação na juventude, retornado ao hemisfério norte, por força da descolonização, fui parar ao Alentejo, mais precisamente a CASTRO VERDE. E foi durante a tarefa que ali levei a cabo, como docente, a recolher a LITERATURA POPULAR ORAL, que um poeta popular, sem LETRAS, me projetou surpreendentemente para as interpelações minha infância e sobre a “relojoaria cósmica”, em quatro versos apenas. Assim:
“Desta mánica do mundo
Quem será o maniquista?
Onde começa o movimento
Não alcança a nossa vista.»
Poeta popular de apagadas LETRAS (como bem mostra a troca de “mánica” por “máquina”), mas de PENSAMENTO luminoso, bem podiam ressuscitar os filósofos Empédocles, Sócrates, Platão, Aristóteles e toda a chusma de pensadores da Antiguidade, todos os filósofos e académicos Modernos, pois eles não me surpreenderiam mais que este poeta popular na cavalgada de dúvidas e certezas que, sobre a “relojoaria cósmica” me perseguem desde terra idade. Já conto 85 anos de vida, a romdar os 86.
CONCLUSÃO

Pois é. Eu sei bem que “este bicho da Terra tão pequeno” já foi à Lua. Sei bem da existência da Estação Espacial com gente dentro. Sei bem que, atualmente, as sondas espaciais rasgam os céus mais longínquos procurando fazer chegar à Terra Informações que ajudem a desvendar os mistérios do Universo. Sei bem que o físico britânico Peter Higgs ganhou o Prémio Nobel em 2013 por ter descoberto o “bostão” (a “partícula de Deus”) que ele e outros físicos persseguiam desde 1964, sabedores que o universo é composto por partículas fundamentais - eletrões, protões e neutrões - peças básicas da matéria postas em movimemto pelo eletromagnetismo.
Enfim, graças a estes e outros cientistas ficámos a saber mais sobre o movimento da “relojoaria cósmica”, sobre o oleado mecanismo dos seus átomos, moléculas, estrelas, planetas, galáxias, pessoas, animais e tudo o mais.
Posto o que volvido sou aos meus tempos de menino a olhar o céu, a contemplar o universo, a respirar o ar puro da natureza, a lavrar a terra, a fazer uso da água na rega dos campos, força motriz dos moinhos hidráulicos, a fazer o fogo para aquecer o corpo e cozedura do pão, enfim, rapaz de aldeia, longe da CULTURA CLÁSSICA, usufruia e lidava com os QUATRO ELEMENTOS sem saber da existência de Empédocles.
É isso. Muito estudo, muita descoberta, muitos mistérios desvendados. Ultimamente uma naveimpulsionada pela “INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL” já navega no “cosmus humanus”, onde se cruzam caminhos e destinos de meteoritos com alma e vida. Não são rochas mortas, não. Nem tão pouco são escória solta, vagante, perdida no espaço, resultante de qualquer fusão ocasional em galáxia distante. Dotados de consciência, de sentimentos, de afetos e de memória, dão-se conta dos limites da sua existência HUMANA, sempre carregada de algumas certezas, muitas dúvidas e de pesquisa permanente. E neste caminhar da CIÊNCIA, muitas interpelações, muitas hipóteses, muitos erros e alguns acertos, tem sentido repor aqui a interpelação do poeta popular alentejano, uma espécie de nave espacial “VAIVEM” em que neveguei até ao meu passado longínquo.
Desta mánica do mundo
Quem será o maniquista?
Onde começa o movimento
Não alcança a nossa vista.»