Hoje deixo algumas fotos ilustrativas. A CAPA do livro ”Carneiros, Cabras e Cães de Guarda” da autoria do cirurgião veterinário, Dr. João Maria da Cunha Fajardo Losveles de Ortigosa, ed. 1926, mais as duas páginas 88/89 que abordam o tema TRANSUMÂNCIA, explicando donde partiam e regressavam os rebanhos, por força do clima e carência e/ou abundância de pastos.
O meu “curriculum vitae” académico e público (on line, disponível no GOOGLE) não inclui a profissão de PASTOR, ainda que eu PASTOR tenha sido, obrigatoriamente.
Com efeito, como todo o camponês que esgadanhou parte da sua vida numa aldeia serrana - CUJÓ - isto é, até aos 18 snos de idade, forçoso era que, feita a QUARTA CLASSE, ingressasse, sem exame de admissão, na UNIVERSIDADE CLÁSSICA DA MONTANHA e a AGRICULTURA e a PASTORÍCIA fossem as indispensáveis cadeiras nucleares do curso.
Por isso, além de aprender a pôr as mãos na rabiça do arado radial celta ou na rabiça de uma charrua de aiveca móvel, de lavrar leiras de milho e de centeio, conforme os usos e costumes que vinham da IDADE MÉDIA, tive, também de aprender a manejar uma aguilhada e, com ela, incitar as vacas a puxarem a carrada de estrume, de carquejas, de lenha, de milho e de centeio, cujo peso fazia “ganir” o eixo de carvalho ou freixo, entalado entre as “estreitouras” e a “cantadeira”, postas sob o “chedeiro” do carro que Aquilino Ribeiro julgava ter-nos chegado dos tempos do visigodo Rei Vamba.
Assim, para além de “lavrador” encartado, sem exames nem diplomas, natural era que fosse também, pelo mesmo processo pedagógico, PASTOR do rabanho, cerca de uma DÚZIA de OVELHAS E CABRAS que havia em casa dos meus pais, alimentados nos baldios da freguesia e nas tapadas domésticas, ao ar livre, em tempo bom, ou nas “lojas” das casas assobradadas, em tempo de invernia com as forragens, empalho e feno recolhidos a preceito, atempadamente.
Aldeia sita na BEIRA ALTA, chão pouco generoso em pastos, não eram só as pessoas que tinham de se limitar a comerem o pão (broa de milho ou centeio) das melhores ou piores colheitas. Comer o caldo de couve galega e até de “beijinhas secas”, quando a neve e as geadas engoliam a verdura das hortas, que remédio, se mais não havia que meter na panela tripé de ferro fundido.
E também os gados eram vítimas da geografia e dos tempos. No inverno, metia dó ver as costelas e os quadris salientes, quase a furarem a pele, em cada animal. Mas dava gosto vê-los arredondados e gordos em tempo de fartura e abundância. Sentimentos estes resultantes da relação estreita e empática que todo o serrano tinha com os animais à sua guarda, seus companheiros de vida, de trabalho e fonte de rendimento. Leite para beber e fazer aueijos das cabras. A lã das ovelhas para meias, camisolas e burrel para vestuário, mantas e capuchas. A venda das crias. E lembro bem os cabritinhos metidos nos alforges do cabriteiro, cabeça de fora, entalados com os demais, a berrarem chorando pelas mães e as mães berrando a chorarem pelos os filhos.
Saindo da aldeia, aos 18 anos, abandonei o CURSO que frequentava e, longe dali, na costa oriental da África, em Lourenço Maraues, tive acesso aos estudos liceais e universitários, cujos curriculos incluíam matérias diferentes daquelas que tinham feito parte da minha aprendizagem serrana. Com muita honra. Num vídeo que fiz dentro de um dos castanheiros lorcados centenários ou milenares, existentes no souto atribuído a D. Dinis, arredores de Vila Pouca, fiz uso, com toda a propriedade, das aprendizagens pré-universitárias como complemento àquelas que vieram depois e fizeram de mim PROFESSOR.
Regressei à aldeia cerca de 17 anos depois e muita coisa tinha, entretanto, mudado. Todas as casas da povoação que deixei cobertas de colmo (exceto a Igreja e a casa dos Pintos) estavam agora cobertas de telha. E os caminhos carreteiros, de rodados vincados no chão, tinham virado estradas planas de terra batida ou asfaltadas. A iluminação da lamparina alimentada a petróleo, virou lâmpada de energia eletrica. E a economia agro-pecuária, no meu tempo de juventude, dava sinais evidentes de ficar abandonada. E as raças de gado bovino, caprino e ovino eram também outras. O verso camoneano “todo o mundo é feito de mudança” aspergia a sua semântica em toda a direcção física e material só na mentalidade não.
As vacas “paivotas” e “arouquesas” que rompiam as “unhas” (os cascos) nos velhos, sinuosos e inclinados caminhos carreteiros e chegavam a esfolar os joelhos no esforço que faziam para levarem o carro adiante, tinham dado lugar ao GADO TORINO leiteiro HOLANDÊS e as terras de milho tinham virado lameiros para pastos e feno.
Quis identificar a raça de gado ovino que pastoriei. Cordeirinhos que vi nascer e que, de seguida, transportei ao colo depois da mãe comer a placenta. Mas desse gado, nem sinal, nem vida. Havia residentes que possuiam alguns caprinos, mas até estes eram de raças diferentes.
Não podendo fotografar ou filmar essa RAÇA DE GADO, fiz alguns vídeos com cabras nos arredores de Cujó, - Senhor da Livração e Vale de Cavalos - e também com uma pastora de cabras na serra do MONTEMURO, nas proximidades de Mós e, mais a nascente/norte, nas proximidades de Campo Benfeito, um pastor com um rebanho de raça BORDALEIRA. Todos eles disponíveis no meu canal do Youtube.
E o mais que posso deixar aqui, como página de HISTÓRIA, acerca desse tipo de GADO OVINO, desaparecido, são as fotografias supra que ilustram este apontamento, retiradas do livro citado, por forma a deixar um testemunho fiel do que era o PASTOREIO por estas bandas, do MONTEMURO nos meus tempos de juventude. s gados nativos e os gados transumantes.
Fui, efetivamente PASTOR de ovinos de raça “charnequeira” ou “serrana”, adaptada e acomodada aos nossos terrenos baldios e tapadas de “míseras pastagens” com que iam “enganando a fome” tal como ficou escrito no livro supra citado, editado em 1926, exatamente no ano em que o ESTADO NOVO dava os primeiros passos, (28-05-1926), REGIME que tinha na AGRO-PECUÁRIA o seu principal sustentáculo do tecido sócio-económico.
Nascido em 10 de junho de 1939, criado na aldeia, feitos os primeiros estudos obrigatórios, vestido de cotim ou de burel, descalço ou de tamancos (os meus pés só souberam o que eram sapatos aos 18 anos) a rilhar, sem conduto, rijas e ressequidas côdeas de broa de milho, por montes e campos, estômago mais relógio do que órgão do aparelho digestivo, fiz parte desse tecido rural até à idade referida.
Depois, tropa feita no R.I.14, em Viseu, outras aspirações a agitarem-me os neurónios, diziam-me que havia mais mundo para lá da linha do horizonte que recortava os montes ao alcance da minha vista, em redor de mim. Mostrei ao meu pai desejos de partir para África. E ele, que, como todos os pais desejam o melhor para os seus filhos, foi pedir dinheiro emprestado para pagar o bilhete de viagem (8.000$00) na COMPANHIA NACIONAL DE NAVEGAÇÃO e embarquei para Moçambique.
À saída da barra do Tejo, debruçado no convés do paquete Santa Maria, nada sabendo de política, braço estendido na direção do TERREIRO DO PAÇO, fiz o gesto que fez Estrepsíades a Sócrates, quando falavam sobre o dactílico, que vem a ser o “dedo médio esticado e o indicador e anelar dobrados”. Gesto de semântica universalmente conhecida. Eu sabia lá quem era Estrepsíadas, quem era Sócrates, quem era Aristófanes, autor do livro “As Nuvens”. Mas sabia fazer esse gesto com o significado a ele associado.
E seguindo a rota de Vasco da Gama, a rasgar as águas do Atlântico e do Índico, abalei para longes terras em demanda de outras gentes, outras culturas, outra profissão.
Por força da DESCOLONIZAÇÃO, na sequência da «REVOLUÇÃO DOS CRAVOS DE 25 DE ABRIL DE 1974», “retornei” à metrópole de avião. E ao sobrevoar LISBOA, dentro daquela máquina voadora de focinho virado à pista de aterragem, ali na CAPITAL da GOVERNANÇA e do IMPÉRIO PERDIDO , lembrei-me das frases que EÇA DE QUEIROZ pôs na boca de Artur, no seu livro “A CAPITAL”, definindo e diferenciando esse burgo urbano da província. Assim:
«Lisboa é a 'estação central da inteligência'».
«A Província é a 'penitenciária' dos espíritos». (pp. 171)
Perante tal lembrança, com os neurónios sempre a faiscarem, veio-me à memória o gesto «dactílico» que fiz à despedida, por via marítima 17 anos antes. E, sem receio de deixar a «central da inteligência», não resisti a repetir o gesto com o dedo médio bem esticado, abalando para a PROVÍNCIA, para esta «penitenciária» dos espíritos. E por cá, liberto das verdades e dos preconceitos queirosianos, cheguei a avançada idade (não tardam aí os 85 anos de vida), onde, sem grilhetas no espírito no pensar, escrever e falar, (recentemente sem papel, nem caneta, nem tinta), na docência ganhei o pão para criar, educar e formar os meus filhos, fazendo uso da «liberdade de espírito» que projeto em tudo o que escrevo e faço, incluindo nestas linhas com a lucidez, a debilidade ou senilidade mental que elas, por si próprias, exalam. E o meu paciente seguidor, usando a tabela de avaliação que os meus pais, lá na serra, em CUJÓ, usavam preparando-me para enfrentar o mundo, recorram, se quiserem, a outra pedagogia e/ou métodos mais modernos, inclusive a nóvel INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL e, na escala que mais lhes agradar, façam a distinção entre o PASTOR e o PROFESSOR que fui.
Fareja, março de 2024
LINK DE VÍDEO ILUSTRATIVO
https://youtu.be/sFuVCe9EbhI?si=xuisH33ZLfe6QPJi