Lembrei-me dele durante um dos DEBATES feitos nas TVs sobre as próximas LEGISLATIVAS. De um lado a Inês, do outro o Montenegro. Debatiam-se valores do passado ressuscitados por um membro integrante da nova AD, acerca do papel das mulheres na sociedade. E mal foi dito isto, tal como o rouxinol de Garret nas lezírias de Santarém, voei imediatamente até às páginas de «A Capiral» de Eça de Queirós, um velho exemplar que, tendo pertencido a uma tal GINA do Bombarral, em 1943, acabou na minha biblioteca, trazido por um alfarrabista.
O melhor é ler. E quem leu o meu livro «AMOR DO REDENTOR», envolvendo Jesus e Maria Madalena, baseado nos painéis de azulejos com ALEGORIAS BÍBLICAS que existem nas paredes laterais interiores da CAPELA-MOR da Igreja Matriz de Castro Daire, saberá quanto me distancio culturalmente do «marialvismo» português que ainda por cá se vai mantendo. O melhor é ler Eça, na grafia usada ao tempo:
«(…)
E pousando o taco, convidou Arthur a cear. A Corcovada tinha ao fundo, para os íntimos, entre a cozinha e a estrebaria, um cubículo com uma mesa de pinho e mochos de palhinha. D’uma parede pendia o retrato de Pio IX de mão erguida n’uma bênção; defronte, n’uma lithographia colorida, uma odalisca semi-nua enfiava pérolas. Ouvia- se ao lado rabujar os netos da Corcovada, estalar na lareira a lenha verde e as mulas dos almocreves, puxando a argola das mangedouras, baterem o chão lageado.
Rabecaz encommendou á Mariquitas, sobrinha da Corcovada, «a bella fritada d’ovos e chouriço e dous meios litros reaes ».
E indicando, com um piscar d’olhos, a rapariga sardenta e roliça:
- Boa perna !
Escarrou para o lado, e, installando-se a mesa. quiz saber a opinião d’Arthur « sobre o gado ».
— Que gado ?
— O gado, o femeaço ...
A expressão brutal escandalisou as delicadezas d’Arthur e o seu desprezo por Rabecaz foi completo quando o ouviu declarar, com o olho lúbrico, que o que apreciava no gado eram «as boas carnes ».
— O amigo nunca esteve em Lisboa ? não — disse Arthur.
O Rabecaz deu uma palmada na côxa:
— Então, meu caro senhor, não sabe o que é gado ! E não faz idéa do que é um pé catita ! — E com uma punhada na mesa: — Então, não sabe o que é a pandega !
Fallou immediatamente de si. Tinha vivido em Lisboa, elle, com cavallos, com cadeira em S. Carlos, com carruagem ! Fôra um príncipe ! No tempo em que Madame Ortza era uma belleza e o Marrare um céu aberto ! Que batidas para as Portas d’Algés ! Que orgias com a Contadini!
— Comi tudo, mas regalei-me ! — disse, dando um puxão ao bigode.
Arthur considerava-o agora com interesse, como uma ruína romanesca.
— O snr. Rabeeaz então devia conhecer bem Lisboa ...
— Lisboa ?
Bebeu um trago «real» e passando pelos beiços as costas da mão cabelluda:
— Meu caro senhor, conheço Lisboa desde o mais alto — e o seu gesto no ar parecia designar dóceis de thronos — até ao mais baixo ! Ao mais baixo ! — E agitava a mão sob a mesa, como revolvendo lamas (…)»
(«Eça de Queiroz, «A CAPITAL», Artes Gráficas, Porto, pp. 78-79)