Trilhos Serranos

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terça, 13 fevereiro 2024 13:53

«QUANDO A FORMIGA TEM CATARRO»

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POLÍTICA E LITERATURA

«DITO POPULAR»

Desde pequeno que conheço este dito popular em contexto de menosprezo por pessoa, ou grupo, considerados «inferiores» aos demais da comunidade ou de conversa. E por vezes assenta bem nas pessoas que, ignorando, totalmente, o assunto em debate, entram nele como se fossem «sábios», não se dando conta sequer que transmitem a sua ignorância, senão mesmo a sua imbecilidade.

 

testadaLembrei-me dele durante um dos DEBATES feitos nas TVs sobre as próximas LEGISLATIVAS. De um lado a Inês, do outro o Montenegro. Debatiam-se valores do passado ressuscitados por um membro integrante da nova AD, acerca do papel das mulheres na sociedade. E mal foi dito isto, tal como o rouxinol  de Garret nas lezírias de Santarém, voei  imediatamente até às páginas de «A Capiral» de Eça de Queirós, um velho exemplar que, tendo pertencido a uma tal GINA do Bombarral, em 1943, acabou na minha biblioteca,  trazido por um  alfarrabista.

O melhor é ler. E quem leu o meu livro «AMOR DO REDENTOR», envolvendo Jesus  e Maria Madalena, baseado nos painéis de azulejos com ALEGORIAS BÍBLICAS que existem nas paredes laterais interiores da CAPELA-MOR da Igreja Matriz de Castro Daire, saberá quanto me distancio culturalmente do «marialvismo» português que ainda por cá se vai mantendo. O melhor é ler Eça, na grafia usada ao tempo:

«(…)

capa e fotoE pousando o taco, convidou Arthur a cear. A Corcovada tinha ao fundo, para os íntimos, entre a cozinha e a estrebaria, um cubículo com uma mesa de pinho e mochos de palhinha. D’uma pa­rede pendia o retrato de Pio IX de mão erguida n’uma bênção; defronte, n’uma lithographia colo­rida, uma odalisca semi-nua enfiava pérolas. Ouvia- se ao lado rabujar os netos da Corcovada, estalar na lareira a lenha verde e as mulas dos almocreves, puxando a argola das mangedouras, baterem o chão lageado.

Rabecaz encommendou á Mariquitas, sobrinha da Corcovada, «a bella fritada d’ovos e chouriço e dous meios litros reaes ».

E indicando, com um piscar d’olhos, a rapariga sardenta e roliça:

- Boa perna !

Escarrou para o lado, e, installando-se a mesa. quiz saber a opinião d’Arthur « sobre o gado ».

—    Que gado ?

—    O gado, o femeaço ...

 texto-gadoA expressão brutal escandalisou as delicadezas d’Arthur e o seu desprezo por Rabecaz foi com­pleto quando o ouviu declarar, com o olho lúbrico, que o que apreciava no gado eram «as boas car­nes ».

—     O amigo nunca esteve em Lisboa ? não disse Arthur.

O Rabecaz deu uma palmada na côxa:

—  Então, meu caro senhor, não sabe o que é gado ! E não faz idéa do que é um pé catita ! — E com uma punhada na mesa: — Então, não sabe o que é a pandega !

  Fallou immediatamente de si. Tinha vivido em Lisboa, elle, com cavallos, com cadeira em S. Car­los, com carruagem ! Fôra um príncipe ! No tempo em que Madame Ortza era uma belleza e o Marrare um céu aberto ! Que batidas para as Portas d’Algés ! Que orgias com a Contadini!

—  Comi tudo, mas regalei-me ! — disse, dando um puxão ao bigode.

Arthur considerava-o agora com interesse, como uma ruína romanesca.

—   O snr. Rabeeaz então devia conhecer bem Lis­boa ...

—     Lisboa ?

Bebeu um trago «real» e passando pelos beiços as costas da mão cabelluda:

—   Meu caro senhor, conheço Lisboa desde o mais alto e o seu gesto no ar parecia designar dóceis de thronos — até ao mais baixo ! Ao mais baixo ! E agitava a mão sob a mesa, como revolvendo lamas (…)»

(«Eça de Queiroz, «A CAPITAL», Artes Gráficas, Porto, pp. 78-79)

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.