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quarta, 12 outubro 2022 17:44

GENTES DA SERRA - OS AMORES DE PEDRO E DE INÊS

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OS AMORES DE PEDRO E DE INÊS SERRANOS

Ter sido nado e criado na serra, ter calcorreado muitas das aldeias serranas, ter sido caçador e «ipso facto» obrigado a atravessar rios, ribeiros, regatos, a vau, sobre um pontêlo granítico de toneladas, apoiado engenhosamente nas suas margens por mãos de hábeis e experientes pedreiros, ter falado com muita gente, autoriza-me a comparar o mundo camponês a uma biblioteca e cada pessoa ser um livro cheio de narrativas abertas ou fechadas, consoante.

 

PRIMEIRA PARTE

PORTAS-CUJÓO povo, sem escola por perto onde aprendesse as primeiras letras e botasse mão à literatura escrita, eivado de crenças pagãs, celtas, celtibéricas e lusitanas, ou à maneira de São Francisco, entretinha-se a dialogar com os animais, com os passarinhos, com natureza e criava as narrativas de bruxas, lobisomens e almas penadas, essas que, contadas nos dilatados serões de inverno na lareira esbugalhavam os olhos das crianças e preenchiam o imaginário secular de infâncias idas.

Já dei conta dessa literatura no meu livro “LENDAS DE CÁ, COISAS DO ALÉM” a par de outras, mais elaboradas, que arrastavam consigo a linfa que corria nas veias da moral de cada pessoa que integrava a comunidade aldeã incrustada nas pregas da serra do Montemuro e da Nave, qualquer que ela fosse.

Uma delas, de que me lembro bem, ligava-se ao VENTO. Dizia-se sobre o vento seco e frio que vindo dos Pirenéus na direção do Atlântico, passava para lá a cantarolar, a “assobiar” de contente a passo rápido e de lá regressava a passo lento, vagaroso e choroso.

Casa Tia Germana-RezComo entender isso?

O povo, desprovido, embora, de livros, não era desprovido de imaginação e criatividade. E vai daí, rápidamente encontrou uma explicação:

«O vento tinha uma amante lá para os lados de Aveiro. Quando ia ter com ela, corria veloz, amoroso e apaixonado, ao seu encontro. E, pelo caminho, não havia buraco de fechadura, frincha de janela ou de porta que não ouvisse o seu canto e o seu assobio.

De retorno, vindo do mar, trazia a chuva, vinha a chorar, na esperança de um retornar quando pudesse nessa relação de canto e choro”.

E com a chuva o aldeão corria a botar mão à abafadeira que servia para tapar o óculo com rebordo aberto na laje granítica assente em dois caibros da cobertura, ladeada pelo colmo que cobria a cozinha ou espaço similar.

O vento e a chuva assim personificados davam corpo à narrativa oral que encantou e entreteve gerações de camponesas que chegaram aos nossos dias. Digamos que partidas, chegadas e idas.

SEGUNDA PARTE

Mas outras narrativas de amores e desamores atravessaram os tempos e chegaram até nós com os dramas sentimentais iguais aos de Pedro e de Inês, por Camões e outros poetas cantadas.

Poldras-PaivóE se o «vento (não era o último nem o primeiro) tinha uma amante em Aveiro», se os reis tinham filhos bastardos a torto e a direito, alegando que «nem sempre galinha, nem sempre rainha», não foram poucos os homens e as mulheres do povo que mantiveram os seus amores clandestinos uma vida inteira ou parte dela, mesmo contra os preceitos da Santa Madre Igreja. E alguns desses amores e desamores, em feliz ou aziado dia, foram granjeados em noites de festa, feira ou romaria.   

O camponês antigo era um andarilho. Aquilino Ribeiro usou frequentemente a expressão «pedibus calcantibus», que o mesmo é dizer deslocar-se a pé por caminhos, veredas e carreiros que formavam a rede viária serrana, entre cidades, aldeias, lugarejos e fojos, com os obstáculos dos rios, riachos e ribeiros, atravessados a vau ou sobre pontes, pontelos graniticos de toneladas ou, simplesmente, poldras a pino, desgastadas e enfileiradas como pedintes à porta de ricos.

Uma dessas narrativas, não sei se retirada da literatura de cordel, contada e cantada nas feiras e romarias por ceginhos,  metia um jovem casal que amantes se fizeram na romaria de Santa Eufémia, na aldeia de Soutelo, concelho de Castro Daire. Ele era das bandas de Mões ela das bandas do Montemuro.

Poldras do Caervalhal - CópiaA ligar essas povoações havia um caminho muito frequentado e puído pelo trânsito frequente de almocreves e romeiros. Esse caminho atravessava os rios Paivó Paiva. O  primeiro, com poldras de passagem no sítio do Carvalhal, termo de Monteiras,  e o segundo com poldras junto de Folgosa e Vila Franca.

Cumprida a promessa que ali levava os romeiros, seguiam-se, por norma, os bailaricos e os namoricos. Uns acabavam em casamento, na formação de famílias alargadas de camponeses e outros tinham como resultado, daí a nove meses, nascerem muitas crianças sem saberem quem era o pai e, nessa situação, colado lhes ficava a alcunha de “filhos da puta”.

Aconteceu que uma dessas mães não queria para si essa reputação, nem queria ver que o seu filho assim fosse chamado e, vai daí, quase no fim do tempo, pôs os pés a caminho e foi ao encontro do homem que, no dia da romaria, nove meses antes, se ajoelhara frente ao altar que ela guardava entre as pernas. Barriga cheia, mostrou-lhe o fruto da sua oração e ele negou-se a aceitar ser o pai da criança e a repetir a reza.

Rejeitada e desconsolada, prenha mas não vencida, a mulher retoma o caminho de regresso, disposta a enfrentar as más línguas da comunidade em que estva inserida. Só que, ali pelo Monte Regelo, entre Monteiras e São Joaninho,  rebentaram-lhe as águas e ela, sozinha na serra, uma autêntica guerreira, procurou um abrigo e, qual corsa bravia, pariu a criança, de parto natural, sem apoio de parteira, benzedura ou recurso ao chá de três adubos - azeite, unto e manteiga de vaca - como era uso nos partos difíceis.

POLDRAS DO VILAR -2004Restauradas as forças, aconchegou a criança no xaile que costumava levar sempre consigo que saía de casa, pô-la ao peito e, ala, em direção a casa. O mais difícil tinha passado. Tinha parido a criança sem auxílio de ninguém e a dificuldade próxima era passar as Poldras do Carvalhal, já que o rio Paivó, ao tempo,  ia de monte a monte.

Saltou uma poldra, saltou outra e à terceira, a criança escapa-se-lhe dos braços e desapareceu rio abaixo. Não pôde socorrê-la. Ali, nas poldras do Paivó, metiam dó, os gritos lancinantes daquela mãe solteira e só. As suas lágrimas engrossaram o caudal do rio e os seus «ais» e lamentos eram abafados pelo murmúrio das águas em turbilhão que pareciam juntar-se àquele doloroso sofrimento humano. Só regressou ao povoado noite alta.

Mas, numa aldeia, mulher que dela sai de barriga cheia num dia e no outro dia aparece de barriga vazia, sem criança ao colo, não basta mostrar desconsolo. A comunidade exige uma explicação e ela é chamada à autoridade.

A autoridade era o Regedor. Um daqueles homens camponeses, chapeu de aba larga, casaco e calças de burel, rústico, mas de um caráter e personalidade assinaláveis. Homem de respeito e respeitado, um daqueles que a história designaria por «homens bons».

Já de certa idade, conhecedor das estroinices da mocidade e dos ínvios caminhos da vida, ouviu a história da «corsa parida» e mandou-a em liberdade e em paz.

Não faltou, porém, quem discordasse da decisão do Regedor, mas devido ao respeito que lhe era devido, meteram a língua no saco e deixaram que a mulher seguisse a sua vida. E viram depois que ela, frequentemente, se deslocava a rezar junto das poldras que lhe roubaram o fruto do seu ventre. E, por assim proceder começaram a acreditar que ela contara a verdade e, em vez de «puta», a comunidade passou a considerá-la uma «mulher de virtude».

 

TERCEIRA PARTE

 Rolaram anos. E a versão que acima deixei é, apenas, uma daquelas que, nesta minha saga de investigador, recolhi junto das gentes da serra, em lugares e protagonistas diferentes, com claros contornos daqueles choradinhos  cantadas  por ceguinhos.

coraçãoMas aconteceu que, neste ano de 2022, prosseguindo as costumeiras investigações, desta feita para preservar os «topónimos» dos sítios que marginam o rio Paivó, o mesmo que já serviu de fronteira divisória das freguesias de Monteiras e Cujó, fui conduzido por um amigo aos moinhos do Corgo, ali onde o rio tem por leito um fraguedo e um poço de respeito.

O meu  olhar gestaltista e breve, admirando a paisagem envolvente,  cores de outono, pintura sem dono, dá lugar a um olhar focado e lento. E, mirando e admirando as margens e o leito do rio, eis que, em pleno fraguedo, escavado na rocha firme, esculpido pela laboriosa água corrente, parece mesmo de gente, está um CORAÇÃO PERFEITO, um poço de contornos bem definidos. Apressei-me a tirar uma fotografia e a ver naquele coração esculpido no leito do rio,  as lágrimas em fio e os lamentos daquela mãe solteira que, nas Poldras do Carvalhal, sitas a montante, em tempo ido, depois de ter parido no mato uma criança, a perdera de imediato, levada rio abaixo. As mesmas águas que, testemunhas de ocasião, doridas, atentas às lágrimas e ao clamor daquela mãe, esculpiram para eternidade aquele coração e nele meteram fluídas a dor sofrida daquela Inês, a crueldade daquele Pedro, e a sentença sábia e fraterna do Regedor, um autêntico selo do Rei Salomão.

EPÍLOGO

A jusante do CORAÇÃO ESCAVADO no leito granítico do rio Paivó, ficam outros moinhos nos lameiros do MIRAVAI. Pelo que, todo o curioso, estudioso ou turista que, amante da natureza, da história e da beleza que ela oferece ao longo do rio, ao menos uma vez, VAI  E  MIRA aquela escultura que encerra os desamores e crueldade de Pedro e os amores da Inês da serra, aquela que, em dia de romaria, cheia de confiança e fé, acreditou nas falsas promessas de um romeiro garanhão. Aqueles amores chorados, ouvidos e sentidos pela água turbulenta e sussurante do rio e cantados, agora, por este poeta andante, o primeiro que, com data, hora e dia, lhe tirou uma fotografia. E o primeiro, também, a associá-la à narrativa popular da tragédia humana ocorrida e sentida na travessia das POLDRAS DO CARVALHAL, naquele aziago dia.

Abílio/2022

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.