NÓS, A NATUREZA E O MUNDO
Para quem por aqui anda, vê uma casa, vê uma varanda e, por baixo dela um ninho, um casal de passarinhos e quatro ovos. Chocados pela mãe, cumprido o seu instinto natural, depois de alguns dias, saídas da casca, eis quatro crias …e isso lhes basta.
Como se fossem meus netinhos acompanhei a gestação e criação deles, com emoção, desvelos e carinhos. E para ajudar os pais imprevidentes (sei lá se inexperientes, disso não estou bem certo!) até fui buscar tojos dos matos para dificultar o assalto dos gatos a rondar por perto, esses domésticos andarilhos, sempre dispostos a ferrar os dentes nos passarinhos, nos pais, nos ovos e filhos.
Atento a tudo isto, atento à poesia da vida, poema nunca escrito, nem visto, vejo que a métrica não está no verso, mas no gesto manifesto que dia a dia, escrevo, faço e registo do afã dos pais muito diligentes pela manhã, pela tarde, o dia inteiro, a satisfazerem os bicos da prole, ela que, sempre, faminta, tudo engole, bicos muito abertos, pescoço esticado, todos cantadores do fado, serenata coimbrã sem guitarrada, cantata à capela, orfeão paroquial, tuna académica improvisada, quarteto consagrado nos palcos do mundo a gritar pela LIBERDADE, senão mesmo quatro manos de um grupo coral rural a entoar o CANTE ALENTEJANO, património da HUMANIDADE.
Como se fossem gente, falei com os pais e os filhos durante todo este tempo de gestação e criação, até onde levou o nosso entendimento, o carinho, o desvelo, a emoção, o soneto sem quadra nem terceto. Passarinho ganha pena e não há bem que não venha ao seu habitat circular de velha citânia , longe do bombardeamento que Putin faz na Ucrânia, arrasando aldeias, vilas e cidades, ao arrepio dos tempos e da escala civilizacional da humanidade.
Vi-os crescer, largar a penugem, ganhar asas e voar. Abandonaram o ninho, abandonaram o lar, voaram, abriram asa, deixaram vazia a sua casa e, por isso, mais vazia a minha casa ficou.
Seguiram, enfim o seu destino, os seus caminhos, libertos dos meus afetos e carinhos. Cumpriram-se as leis da natureza. Mas a sua estada ali, a sua permanência ali, a falta daqueles passarinhos ali, tal como se fossem meus netinhos, faz-me sentir a sua ausência, aqui.
Restam-me os registos feitos. A poesia filmada da ninhada. Os pais satisfeitos, responsáveis e diligentes, a entrarem e a saírem. As crias a pipiricar insatisfeitas, pescoços esticados, boca aberta, famintas, os seus clamores, a lembrarem cantores de palco e de povo, tenores de salão, e nós, criadores, com alguma imaginação, eis-nos a colocar naqueles bicos abertos as árias, as canções e as modas que, neste mundo cão, nos dizem algo de profundo, de vivência e de história.
Por agora, ora vejam, ora escutem a voz telúrica da planície, a voz ondulante da terra e do mar, devagarinho, lentamente, deixem-se embalar e, sintindo o que eu sinto, por certo ouvirão sem igual, o hino dos passarinhos, ali, no seu ninho natal.
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