Tudo s postos os rapazes combinam entre si qual deles deve «ler» as «deixas» e quais os que devem «roncar» como o asno, o qual, na sua qualidade de pensador militante, não entende nada do que se passa, nem vislumbra as razões que o levaram a sair da loja, de ao pé da manjedoura. Aproxima-se a meia-noite.
A algazarra começa. As pancadas nas latas ecoam pela povoação e rasgam o pano-bréu que a cobre e aos montes vizinhos.
- Volta p'raqui burro!
- Aí, oh!
- Eh burro, que és burro, chó!
- Him...hooom...hiom...hioom!
A arruada começa. Primeiro, uma parte da povoação e depois outra. Na parte norte, o burro sacia a sede na fonte do seu nome a «fonte do burro». O barulho das latas a arrastar pelo chão áspero e irregular da calçada à portuguesa lembra ao habitante mais descuidado que a tradição está viva e deixa surpresos e espantados, quebrado que foi o seu sossego, os animais noctívagos. Se os lobos rondam por perto, em busca de rês perdida ou rafeiro descuidado, logo se põem ao largo, gravado que têm na memória o batuque característico de antigas montarias e transmitido por anteriores gerações lupinas.
Regressados ao ponto de partida, a vozearia do grupo, em simultâneo com o tantan...tantan... das latas, indicam que está prestes a «partilha».
Antes, porém, tomam-se algumas precauções. Alguns rapazes, armados de varapaus ou enxadas, tomam posição em redor do «calhau do burro», não vá algum morador, descontente com a «deixa» do ano anterior atribuída à parente ou amiga, fazer das suas e escapulir-se no escuro.
Em cima do calhau o testamenteiro está pronto a desfiar a meada. Através do funil colocado na boca, à laia de corneta, passam os «podres» das raparigas do lugar, cabendo a cada uma a parte do burro que, por consenso dos rapazes presentes lhe foi atribuída, correspondente ao defeito ou comportamento mais marcante da sua personalidade.
Assim:
«Deixo e torno a deixar, pedaços de burro até ele acabar. Para a menina (tal)...por ela ser espevitada, deixo os sapatos do burro, p'ra fazer barulho na calçada. Deixo e torno a deixar, pedaços do burro até ele acabar. Para a Maria (tal), por ser muito friorenta, deixo o mangalho do burro, p'ra ver se ela esquenta. Deixo e torno a deixar, pedaços do burro até ele acabar. E à menina (tal) por ser muito tosca, deixo o rabo do burro, p'ra ela sa udir a mosca»
.O testamento é longo. De quando em quando, a leitura é interrompida para dar lugar à algazarra, ao rugir ensurdecedor das latas e aos «zurros» do animal, imitação a cargo dos intervenientes escolhidos, que reage aos golpes do machado esquartejador.
«Deixo e torno a deixar, pedaços de burro até ele acabar. Para a Maria (tal) por ter a mania que é fina, deixo a pele do burro, p'ra uma gabardina. E à Maria (tal) Por ser curcumbada, deixo a espinha do burro, p'ra ficar desempenada. Para a menina (tal) por ser espertalhona, deixo os «guizos» do burro, p'ra ela coçar a mona».
Diferentemente das «mandas» de Cujó e de outras provações vizinhas, nomeadamente as Monteiras, hoje extintas, e que não revestiam a forma da «partilha do burro», a tradição de S. Joaninho, encontra paralelo noutras terras beirãs, diferindo nalguns aspectos de não menor importância do ponto de vista sociológico.
Aqui a partilha faz-se de noite e só os rapazes é que têm vozes. Só eles podem ter a liberdade e o desplante, a coberto da noite, de apontar o dedo às raparigas. Elas não tugem, nem mugem. O mesmo não acontece, porém, em Lazarim, concelho de Lamego.
LAZARIM
Aqui, a par dos mascarados, com máscaras de madeira e do folclore que dá cor e vida ao acontecimento, concertina, bombos e tambores, as raparigas, em plena luz do dia, lado a lado com os rapazes (os compadres e as comadres) podem dizer das suas e enfrentar o «macho» com as suas «deixas» subtis, irónicas e eróticas.
Neste ano da graça de 1988, terça-feira de Carnaval, dia 16 de Fevereiro, fiz parte da mó anónima de gente que presenciou o espectáculo. Trânsito interrompido. Alguns fotógrafos. Curiosos muitos. Cenas filmadas. Alguns jornalistas? Alguns estudiosos? Talvez. O assunto merece ser tratado em trabalho próprio, mas para já aqui deixo a referência ao facto de, no riso, homens e mulheres se encontrarem no mesmo plano, desta vez com sinal mais para as raparigas que souberam trabalhar o texto (o testamento) com mais vigor, mais subtileza, mais ironia, mais graça.
Enfim, sem grande rigor métrico, as quadras tinham sentido e carga erótica bastante para mostrarem que esse ingrediente, tipicamente humano, resistiu à castração feita por certos capadores culturais que nesse tipo de tradição, nesse tipo de julgamento, para além de entretenimento, nunca viram a pedagogia utilizada pela comunidade para corrigir vícios e/ ou comportamentos individuais.
Ditas em voz alta e, plena luz do dia (ao contrário de S. Joaninho) e com o rosto bem descoberto, a cena contrasta com os mascarados que cirandam em volta. Serão máscaras de Carnaval? Ou antes a herança de «lazarentos» obrigados a esconder os rostos chagados? Aqui tudo lembra um lazareto. As casas antigas apresentam paredes que não viram régua, esquadro ou prumo. Rugosas e irregulares, são rostos humanos cobertos de pústulas à espera de tratamento adequado. A defesa e preservação do património histórico-cultural passa também por aí, e as tradições populares, como manifestações culturais que são, a permanecerem vivas e dinâmicas, merecem que o quadro físico onde se desenrolam as acompanhe na sua vitalidade não dando ao contrário, mostras de abandono, desolação e morte.
Cf. Abílio Pereira de Carvalho, «Lamego Hoje», ano de 1988