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segunda, 03 julho 2023 20:31

COSTUMEIRA - ENTRADA AOS SERÕES EM CUJÓ

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«Regozija-te pois, ó mancebo, na tua mocidade, e viva em alegria a teu coração na flor dos teus anos, e anda conforme as caminhos do teu coração e segundo os desejos em que põem a mira as teus olhos; mas sabe que Deus te fará ir a Juízo para dar conta de todas estas coisas».  Eclesiastes, XI, 9.

 

A «entrada aos serões», praxe que todos os anos se realiza na povoação, dava ocasião, não se sabe desde quando, a que, pelo menos uma vez na vida, aldeão analfabeto (ou de rudimentares letras) tenha deixado o seu obscuro papel de cavador ou artífice para assumir, pelo espaço de uma audiência, o de iluminado bacharel em leis. Em consequência, e também uma vez na vida, ao botar sentença, tenha sido o fiel da balança e não o peso colocado num dos seus pratos.

Cerimónia antiga, de cujas origens, no dizer dos idosos, «não há memória», tem  por finalidade, real ou aparente, julgar os actos praticados por todos os mancebos naturais da terra quando atingem os 19 anos de idade e, simultaneamente conferir-lhes as «ordens» sem as quais e antes dessa idade, lhes não é permitido frequentarem os serões ou permanecerem nos caminhos e becos da aldeia, depois do lusco-fusco do fim do dia.

Revestindo sempre, ao que parece, a forma de tribunal é uma praxe reservada exclusivamente, à participação dos rapazes solteiros, cuja audiência secreta, para os idosos «já não e o que era». Hoje, «é só uma brincadeira».

Estando os seus intervenientes directos enquadrados entre as 19 e, mais ou menos os 30 anos, salvo os celibatários que, a manterem-se nesse estado civil, lhes cabe, ao mais velho, desempenhar as funções de juiz, pode dizer-se que «magistrados» e «réus» não têm muita idade e experiência de vida a separá-los.

Tradicionalmente realizava-se na noite que precedia a grande feira do Fojo (lº Domingo de Setembro de cada ano), mas o grande surto migratório da década de sessenta, ao afastar do meio a maior parte dos intervenientes directos, impôs-lhes outra data de realização: a noite que precede o 2º Domingo de Agosto, precisamente por nesse Domingo ter lugar a romaria do Senhor da Livração e a ela virem, de longes terras, os que por lá governam vida.

A «entrada aos serões» em tempos idos dita «coisa séria» marcou, naturalmente, através dos tempos, as atitudes da juventude. Os rapazes, a par da alegria sentida por verem aproximar-se a data da sua emancipação para a vida nocturna, a par do prazer antecipado de poderem saborear a companhia feminina das serandeiras durante a escarpiada da lã, a maçada do linho, a desfolhada, os bailes e cantorias que aqueciam as noites cheias de magia e sorti1égio, a par disso, dizia, o medo, a ansiedade, a inibição eram outros ingredientes que, nas vésperas e na noite do grande júri, condicionavam o comportamento desses rapazes.

A tradição e o cenário dramático não eram para menos.

Os «magistrados» senhores do seu papel, muniam-se dos adereços tidos por convenientes e necessários a uma cerimónia mista de autoridade, ambiguidade e humor. O juiz, despida a roupeta de burel, substituída por outra mais luzente, óculos de míope, bigode retorcido e louro feito de barba de milho, apresentava-se na audiência com a postura e a idade de um geronte, disposto a não envergonhar, pela aparência, o titular do cargo nos tribunais autênticos.

Os «advogados», sabendo que os seus argumentos, réplicas e tréplicas (apesar de desconhecerem esta terminologia e conceitos) podiam influenciar a sentença do juiz e querendo fazer jus ao ditado «um burro carregado de livros e um doutor» punham à prova toda a sua imaginação para, naqueles tempos descolarizados, encontrarem um calhamaço, um missal, um alfarrábio e, à falta deles, a feitura, com entusiasmo, de um bloco de papel de embrulho, volumoso e sebento, pois, um livro assim, tão vazio de letras como os utentes, no momento de contraditar o opositor, ou mesmo discordar da sentença do juiz, prestava-se a impressionar a assistência: atirava-se ao chão, espezinhava-se, rasgava-se e, com gestos e palavras, dizia-se que «as leis nada valiam» na opinião de um só homem.

As «testemunhas» eram todos os mancebos que no ano anterior haviam passado pela praxe. A elas cabiam trazer à audiência as coisas mais gravosas que os «réus» eventualmente tivessem cometido no quotidiano da vida, até aquela idade. E era ponto assente que ao tribunal vinham parar os desvios reais ou aparentes, feitos às regras do bom entendimento comunitário. Condenava-se a abertura indevida de uma poça de limar, sem se olhar ao ramo verde que, sobre o boeiro (dito bacanheiro) marcava a posse de outrém; condenava-se uma parede deitada abaixo por maldade; os gados nas hortas e searas alheias; um molho de lenha cortada em coutada ... etc. etc.

Mas a fraqueza humana que à acusação dava gozo escalpelizar era, sem dúvida, o relacionamento e comportamento dos rapazes e das raparigas, tidos por montes e vales, pastoreando rebanhos, carregando lenha ou fenos, ceifas, malhadas, recolha aos celeiros e palheiros, ambiente e actividades sempre propícias a converterem um gesto, uma demora prolongada, em matéria crime passível de julgamento e condenação.

Todo o jovem ramboia que seguisse os desejos do coração (segundo o versículo bíblico) jovem que não se contentasse com encher a menina dos olhos com o que via, e optasse antes por encher a lesta a mão, com aquilo que falta às amazonas, tinha, por certo, pesada sentença.

Para cada «réu», e segundo as maroteiras trazidas a juízo, uma sentença. Trazidos a tribunal pelo oficial de diligências os jovens eram julgados um a um. Metidos em compartimentos separados, não havia contacto entre os sentenciados e os outros. Só no fim da audiência eram trazidos de novo à sala para tomarem conhecimento da pena que a cada um coube em sorte.

Lidas as sentenças, o juiz, tendo por base a matéria produzida nos autos, usando das suas capacidades oratórias, fazia um discurso tão moralizante e edificante, quanto os recursos e os dotes de que dispunha.

Depois vinha o convívio. Desfeito o tribunal, as penas convertidas em salpicões, quartilhos ou ancoretas de vinho, cigarros e bacalhau permitiam a uma dezena de estômagos a desforra do jejum anual.

Digeridas as sentenças, a arruada saía povo fora e, ao ritmo do bombo, ferrinhos e rabeca, as vozes alternadas dos mancebos mais dotados para o canto de improviso lembravam ao vizinho mais idoso e descuidado que decorria a noite da «entrada aos serões». As raparigas, aconchegadas aos lençóis de linho, sabiam que, daí em diante, quando se sentassem ao redor do monte de lã, em noite de escarpiada, podiam estender as suas saias e, com esse gesto, reservar, junto delas, lugar para  o seu namorado, acabadinho de «receber ordens».

E hoje?

(...)

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Abílio Pereira de Carvalho, do meu livro «CUJÓ, UMA TERRA DE RIBA-PAIVA», 1993.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.