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quarta, 22 janeiro 2025 14:41

LITERATURA POPULAR - DOCENTE NA ESCOLA E FORA DELA (1)

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Quando, retornado de Moçambique, fui colocado na Escola Preparatória de Castro Verde, como professor de HISTÓRIA e de PORTUGUÊS, logo me  dei conta de circularem na LITERATURA ORAL composições poéticas que não constavam nos COMPÊNDIOS  e nas  ANTOLOGIAS que davam corpo aos programas escolares que me tinham sido administrados, enquanto estudante. Eram as chamadas “DÉCIMAS ALENTEJANAS”.

 

PRIMEIRA PARTE

Dei conhecimento disso ao meu ex-professor de PORTUGUÊS, LATIM E HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA, em Lourenço Marques, EXTERNATO MARQUES AGOSTINHO, (na altura Professor na Escola Secundária de Oeiras) e ele me incentivou a fazer uma recolha, pois era matéria que não figurava nos livros, mas não era pior, nem melhor, era somente “diferente”.

E acrescentou que, tendo sido eu colocado numa ESCOLA PERIFÉRICA, era um “privilegiado”, pois estava em condições de  “recolher” matéria linguístico-literária que permaneceu viva em Portugal, diferentemente do que sucedeu nos países industrializados, ditos “evoluídos”, que tudo apagaram nas bruscas mudanças trazidas com a Revolução Industrial. Nós, que não entrámos nesse comboio de alta velocidade, qual campo arqueológico das mentalidades e procedimentos, preservámos, graças a isso,  muito desse nosso passado “literário” agro-pastoril, mais “dito e ouvido”, do que “escrito e lido”. Seria até um bom trabalho académico se tal recolha fizesse.

Com este esclarecimento e INCENTIVO, não hesitei um momento. Pus pés a caminho, gravador a tiracolo, pilhas e cassetes dentro. Claro que esta minha atitude pedagógica tinha por muleta a expressão daquele MESTRE-ESCOLAR que me tinha ensinado, em livro editado, cito de memória: “para que o saber do professor chegue ao conhecimento do aluno, é preciso primeiro que o saber do aluno chegue ao conhecimento do professor”.

Vinha mesmo a calhar. Essas composições poéticas, bem como as lengalengas, os aforismos populares, as adivinhas, travalínguas e tudo o mais que circulasse livremente longe dos tipos de Gutenberg, dir-me-iam muito da comunidade educativa envolvente e facilitar-me-iam a tarefa docente nas duas disciplinas que lecionava: PORTUGUÊS E HISTÓRIA. Eu tinha acabado de chegar de Moçambique e, apesar de estar casado com uma colega alentejana (natural de Castro Verde, Mafalda de Brito Matos Lança Carvalho), ignorava, por completo, o meio sócio, económico e cultural, onde fui colocado, na sequência da DESCOLONIZAÇÃO. Não me enganei.

ESPIGA-CAPAFeita a recolha em gravador - BASF - envolvi, de seguida,  os meus alunos na tarefa e, durante o meu estágio, na Escola Preparatória MÁRIO BEIRÃO, em Beja, prossegui na mesma senda e editámos, ali,  uma REVISTA ESCOLAR policopiada com o título “A ESPIGA” e, subtítulo “CULTURA POPULAR ALENTEJANA”. 

Claro está que, por sugestão minha, cada turma, através do respetivo delegado/delegada, incluiria nela um texto de apreciação crítica sobre o trabalho realizado por eles, junto dos seus parentes, amigos, poetas, agricultores, camponeses e outros ofícios.

Sem pretensão académica, desenvolvi algum estudo teórico sobre estas composições poéticas e publiquei o resultado desse meu trabalho, na imprensa local/regional, nomeadamente no “DIÁRIO DO ALENTEJO” e no Boletim “CASTRA CASTRORUM” fundado, em Castro Verde,  por José Guerreiro, cuja iniciativa nunca é demais lembrar.

SEGUNDA PARTE

“As décimas populares, também chamadas quadras, quadras de quarenta e quatro pontos, obras e contos versados, são composições poéticas formadas por um “mote” de quatro versos, seguido de quatro DÉCIMAS rematadas, cada uma de per si, sequenciadamente, com os versos que constituem a quadra MOTE.

Composições poéticas periféricas, cujos autores são, na sua maioria analfabetos, semianalfabetos ou analfabetos funcionais, omissas nos compêndios e antologias da LITERATURA PORTUGUESA, pelo facto de não terem recebido, por parte dos responsáveis pela preservação e divulgação da cultura popular, a devida e merecida atenção, atitude a que não será alheia uma certa conceção de CULTURA, aquela que é veiculada pelo discurso escolar académico institucionalizado (...)

Que eu tenha conhecimento estas “obras” apesar da temática variada e rica que abordam e da subtileza com que os seus autores manipulam o “verbo oral” não figuravam, e creio  que ainda não figuram, nos manuais escolares, pelo que, não sendo objeto de estudo, se estará retirando ao estudante (de qualquer grau)  o contato com o testemunho irrefutável do talento, espírito criador/crítico e a capacidade de expressão do povo, isto talvez porque “há tanto homem instruído/a quem a instrução embrutece”, verso que veremos a sen tempo, lá mais para o fim, devidamente enquadrado.

ESTROFE DE 10 VERSOS FORMALIZADA HÁ 300 ANOS

Não cheguei a saber ao certo em que momento da HISTÓRIA DA LITERATURA  (oral ou escrita) a décima adquiriu, para não mais abandonar, a forma como se apresenta.

rOSA lAMA - CópiaTal como chegou aos nossos dias ela parece comportar marcas das cantigas de amigo, do vilancete medieval, de outras composições coevas, bem como (aqui não há dúvida) a marca da décima clássica, enquanto estrofe de dez versos, que atingiu forma acabada no século XVII.

Com efeito, o gosto de versejar glosando um “mote” remonta aos primórdios da nossa literatura. O vilancete típico reproduz integralmente o último verso do “mote” no fim de cada estrofe, sem que contudo, este processo se tornasse  regra geral na arte de poetar medieval. 

Os poetas, populares e eruditos, influenciando-se mutuamente, ensaiando, através dos tempos,  estrutura, métrica e rima, chegaram a uma forma acabada que, seguindo o esquema rimático da décima clássica - ABBAACCDDC - jamais seria abandonado. E desde a sua formalização a esta parte já lá vão cerca de 300 anos.

Perante isso ocorre perguntar quais as razões do arreigamento, por parte dos poetas populares ainda vivos, a um estereótipo velho e relho, sabendo nós que, não obstante também utilizarem outras formas de versejar, foi este  que cultivaram por excelência?

TERCEIRA PARTE

Cantadas e contadas em pequenos grupos, em família, numa taberna, num largo, cuja chamada à memória não raras vezes se consegue com a ajuda de Baco, vendidas em folhetos soltos nas feiras e aqui também cantadas, às vezes à desgarrada e de lufada repentista, salvo melhor opinião é ao ritmo melódico do verso, à problemática que abordam e às virtualidades mnemónicas do esquema rimático que as décimas populares, fora dos livros de estudo,  devem, em grande parte, a sua resistência à erosão do tempo. A sua estrutura fixa, adaptada aos meios de comunicação do mundo camponês e em concordância com a vida estática e rotineira desse mundo, sobreviria, sem alteração, até à chegada de outros meios e formas de comunicação que lhe cavaram a sepultura, veiculando outras culturas e entretenimentos.

Hoje, pouco produzidas por poucos, poucos (estou a reportar-me a ao tempo da recolha, 1982) são os velhos que “ataganham” (sic) obra completa. E para o fazerem, aqueles que o fazem, não raras vezes param para voltar ao princípio e apanhar a “sequência”, como dizem.

Algumas delas estão irremediavelmente perdidas, Acabada a geração que viu nascer a televisão, outros meios de comunicação social e outras formas de vida, desaparecerão dezenas e dezenas de “obras” que poderiam figurar, a justo título, no arquivo do nosso património cultural.

No ensejo de contribuir para a salvaguarda de algumas, dentro das minhas possibilidades e disponibilidades, sem qualquer subsídio e estímulo, que não fosse o do meu ex-professor de Português – Dr. Francisco Cristóvão ricardo -  não fosse o respeito que me merece a cultura consubstanciada, aqui, no legado às gerações  futuras de maneiras de ser e estar no mundo das gerações passadas.

fAÍCA5 - CópiaAcresce dizer que, neste primeiro passo, aos objetivos imediatos que me propus de recolher e divulgar as composições não presidiu qualquer critério de seleção em termos de qualidade, já que a boa ou má qualidade de cada uma, independentemente da sua origem cósmica e progenitores, não sou eu quem a avalia. Ela está no grau de aceitação que as mesmas tiveram no seio das populações, em geral, e, em particular, nas pessoas mais aptas para produzi-las, transmiti-las e retê-las, independentemente de terem sido arquivadas na memória por via oral ou escrita. E neste Portugal de Camões e de Pessoa, no Baixo Alentejo, duas «estrelas» eram lembradas e reproduzidas com emoção: Manuel de Castro, de Cuba e o «tio Belchior, da Estação de Ourique.

Certo é  que  composição. (vinda da mais diversa proveniência, anónima ou de autor conhecido, vivo ou falecido) que fosse datilografada em papel de cera, que passasse na  duplicadora da reprografia escolar, que chegasse às carteiras dos alunos, pronta estava  a iniciá-los na arte de poetar que vinha de longes tempos, aquela que estava impressa em livros e compêndios. Saberem o que era um verso, uma estrofe, um terceto, uma quadra e por aí fora. Saber distinguir a silaba gramatical da sílaba métrica, o ritmo binário ou ternário dos versos, a rima (ou falta dela)  e o esquema rimático, emparelhado, alternado, cruzado, sempre a somar e asubir. 

Assente na carteira, uma folha escrita em letra fixa, letra aparentemente morta,  saía dali cheia de vida, virava seara ondulante a perder-se no horizonte, por herdades, courelas, outeiros e montados, devolvendo ao chão de onde era originária a vida social, a crítica, a ironia mordaz, o trabalho, o divertimento, as desavenças, amores sofridos, o crime, as paixões, os animais a tomarem a voz de gente, como nas fábulas. Enfim, histórias de vida postas em verso por poetas que nunca viram uma letra e, se viram, não éra do alfabeto, mas LETRA DE DÉBITO, empréstimo para compra de uma “parelha” na grande feira de outubro, em Castro Verde.

AUSÊNCIA NOS CURRICULOS ESCOLARES

É evidente que recolhendo e divulgando a cultura popular e pugnando para que ela entre nos currículos escolares, está subjacente ao meu pensamento a ideia da descentralização pedagógica e cultural preconizadas pelas  atuais  correntes de pedagogia que informam uma educação democrática. A recolha e estudo da cultura popular (seja qual for a forma que revista) conduz naturalmente a um discurso pedagógico mais adequado e consentâneo com a mundividência dos alunos, oriundos que são das comunidades que tal cultura produziu e constitui o substrato da sua formação pré-escolar.

Enfim, sem curar de aprofundar as razões subjacentes à rejeição deste tipo de cultura e saberes, contrapondo-a à cultura institucionalizada, a única que aparecia nos livros com foros de dignidade, devo dizer que, uma vez aceite como igualmente digna (nem melhor, nem pior, mas tão somente diferente), para além do aproveitamento “literário” que cada professor entenda fazer de cada “obra”, todas elas, pela temática que abordam ou tratam, são um repositório histórico da comunidade que as viu nascer e bem dignas são, por isso, de reflexão nossa, de todos os que se embrenham na FLORESTA DAS LETRAS ansiosos de saborearem frutos silvestres genuínos e autênticos, diferentemente dos escritores e poetas bucólicos de antanho que, sentados numa escrivaninha, através da levíssima pena de pato, fizeram sair da sua imaginação autênticas obras-primas de literatura, nem sempre condizente com a realidade local. A “lyra” e o “lyrismo” que animam a experiência de vida camponesa, não vibram pelo diapasão desses poetas quinhentistas. Facto que não ficou fora da ironia de Camilo Castelo Branco, quando se referiu às aldeias do Minho. Confrontando o que, embevecidos, esses poetas bucólicos diziam delas, com o que elas eram efetivamente, escreveu:

«A mim me tinham dito os poetas umas coisas que eu não acreditei. Sá de Miranda e Bernardes; Lobo e Fernão Álvares, Camões e Braz Garcia (...) os quatro pontos cardeais tomados de poetas que melodiavam bucólicos louvores da santa vida pastoril, virtudes de zagalas que faziam corar as rosas de puro envergonhadas (3)

(Camilo dixit)

E para terminar, uma ressalva: discutindo-se hoje o facto de o fenómeno literário não ser forçosamente normativo, o qual pode até incluir distorções na forma gráfica (estou a lembrar-me dos poemas visuais, e do “g” de formiga com duas anteninhas na cabeça) eu me penitencio por ter utilizado, com raras exceções, a ortografia corrente, na coleta que, de áudio  passei a escrito. As circunstâncias que rodearam a recolha que fiz contribuíram, em grande parte, para que isso acontecesse.

NOTA :  cf. «INTRODUÇÃO»  ao trabalho de recolha de poesia popular que fiz no concelho de Castro Verde, publicada no “Diário do Alentejo”, II SÉRIE, n. 44, de 25-02-1982, pp. 4.

CONCLUSAO

Foi trabalho feito entre os anos de 1976 a e 1982. Entreguei a recolha, um “dossiê” (pro bono) ao MUNICÍPIO DE CASTRO VERDE, quando regressei ao meu concelho de origem. Trouxe cópia e, de quando em vez, folheio o material recolhido, produzido por aquelas PESSOAS que, ignorando e não lendo PESSOA, na seara do pensamento deixaram, em formatos diversos, pelo Alentejo inteiro, por montados e gentes, as sementes que melhor se ajeitavam ao chão que lavravam. E colhi alguns dos frutos semeados e,  nos tempos que correm, agrada-me reproduzir aqui, com a ironia mordaz  que transporta,  uma dessas DÉCIMAS e notas afins. Assim:

iNSTRUÇÃO - CópiaMOTE

A instrução não é precisa

A instruçáo não convém

A instrução embrutece

A quem muita instrução tem.

I

Duques marqueses e morgados

Familias de igual medida

É tudo gente instruída

Alguns em direito formados.

Ilustres lentes e deputados

É o que que a sorte harmoniza

Eles conhecem o bem do mal

Para a base fundamental

A instruçáo nã é precisa.

II

Se todos pudessem estudar

E todos pudessem saber 

Quem havia de exercer

Por aí tanto lugar?

Ninguém queria trabalhar

Nem cuidar dos gados de alguém

A instrução para quem não  tem

Não é útil muito ensino

E para quem  é pequenino

A instruçáo não convem

III

O rico por ter estudo

Não faz trabalhos de peso

E nem encargos de desprezo

Quem tal faz é o povo rudo.

Quem não sabe faz tudo

É é o que menos merece

Aquele que nada conhece

De que serve ter aprendido

Há tanto homem instruído

Que a instrução embrutece.

IV

Ver-se o pobre ignorante

Não causa admiração

Ele não recebeu instrução

Não vê os erros por diante.

Admira é o estudante

Que vai a Coimbra e vem

Não é um, são mais de cem

Se a gente os for s contar

Isto é que é de admirar

A quem muita instrução  tem.

 

Nota: dita por António Silvestre Rosa, em 1982, com 70 anos de idade, 3ª classe, Casével, trabalhador agrícola. Atribuída   ao “tio Belchior da Estação de Ourique”, poeta de verso na ponta da língua, glosando  a provocação feita no MOTE fornecido por Brito Camacho,  numa das suas idas a Aljustrel. Claramente se vê que a lupa do poeta caiu logo sobre as classes dominantes “duques, marqueses e morgados…” , sem esquecer o  “estudante que vai a Coimba e vem”, referência clara ao provocador Brito Camacho.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.