RETORNADOS
Debruçado
Na minha varanda
Voltada para a rua
Em Lourenço Marques
Vejo o mundo apressado
Confuso, cada um na sua
A correr de lado para lado
De banda para banda.
Carros, camionetas, camiões
Carregados de mobílias
Roupas, almofadas, colchões
Mesas, cadeiras, famílias
Inteiras refugiadas
Dos subúrbios da cidade
Chegam de todas as partes
Temerosas da fúria exaltada
Da multidão negra excitada.
Confrontam-se negros e brancos.
Será racismo ou será ódio recalcado
Pelo tempo, nunca ultrapassado
Por colonizador e colonizado
Apesar de conviverem nos bancos
Dos jardins, nas ruas e esplanadas?
Na confusão passam ambulâncias.
Ouvem-se sirenes estridentes
A caminho do Hospital.
Há feridos, fruto da intolerância
Da caçadeira e da catana.
Não se toleram as gentes
A descolonização vai mal
E o que se vê não engana.
A cidade é o castelo medieval
Que oferece alguma segurança.
É o prólogo da debandada,
Tempo de arrumar a trouxa e partir
Como alertaram atempadamente
Os poetas-cantores de Abril
Que os governantes não viram,
Não escutaram,
Não leram, ignoraram.
Muita habitação abandonada
O cais abarrota de contentores,
Malas, embrulhos, num repente.
Barcos e aviões cheios de gente
Que vai e não volta a vir:
Operários, enfermeiros, doutores
Funcionários, domésticas, lavradores
Crianças, meninos, brancos
Novos, velhos, mulatos
Civis, militares, polícias
Criadas, criados, senhores.
Serventes, negros assimilados,
Cães, pássaros e gatos,
Receosos de perseguição e sevícias.
É o retorno ao retângulo
À beira mar plantado
Território donde partiu Gama
De muitos outros acompanhado
A caminho da Índia sem tormenta.
É o século dezasseis ao invés
Já ninguém por aqui se aguenta
No império de lés a lés.
Tudo, tudo se vai embora
E o Adamastor mostra agora
O seu rosto verdadeiro.
Vinga-se do pioneiro
Que um dia se atreveu
A dobrar o Boa Esperança:
O navegador Bartolomeu
Cantado por Camões.
Vinga-se das gerações
Que aqui fizeram vida
Aqui buscaram pão e guarida
Sem pensarem na contradança.
Muito tempo é passado.
Correram rios de História.
E ao herói, ao descobridor
Ao santo, ao político, ao mentor
Que com artes e manhas
Construíram um império,
Ufanos de batalhas e façanhas
Todas cobertas de glória
Cantando e ocultando fortuna...
Sucede o vencido, o paupérrimo
O incauto, o despido retornado.
São milhares! Tanta gente
Sem perceber coisa nenhuma
Do passado e do presente.
ABÍLIO-L.MARQUES, 04.11-1974