B - CRUZEIRO ALUSIVO À INDEPENDÊNCIA E RESTAURAÇÃO DE PORTUGAL
Na crónica anterior, com o título em epígrafe, reportei-me ao imponente CRUZEIRO granítico levantado no MONTE DA CABEÇA (ALTO DA CABEÇA) em satisfação do ensejo patriótico do ESTADO NOVO que, em 1940, mandou erigir em tudo o que era território nacional, aldeias, vilas e cidades, monumentos alusivos à INDEPENDÊNCIA de PORTUGAL (1139), à RESTAURAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA (1640) e, naturalmente, glorificação ao regime vigente (1940), saído da Revolução de 28 de Maio de 1926.
Esses monumentos genericamente em forma de CRUZEIROS estão levantados por tudo quanto é sítio, alguns deles até confundidos com pelourinhos e como tal apresentados pelo senhor Dr. Google, onde quase todos nós vamos testar os conhecimentos.
Mas nem todos foram levantados nos meios urbanos. Alguns nasceram como ulmeiros em terrenos descampados, baldios municipais ou paroquiais usufruídos pelas populações que habitavam os diversos aglomerados constituintes da mesma freguesia, ou paróquia.
Alguns desses monumentos são autênticas obras de arte de cantaria e outros nem tanto. Sem obediência a modelo exclusivo alguns deles incorporam vários degraus, um plinto de quatro faces com as inscrições alusivas aos fatos históricos comemorados, um fuste de altura e formato diverso, um capitel e uma esfera armilar sobre a qual assenta, como remate, uma cruz.
O CRUZEIRO levantado no Monte da Cabeça é o mais imponente, que não o mais artístico, de todos aqueles que conheço, ainda que conheça outros mais toscos. Remata-o uma corpulenta CRUZ LATINA a fazer jus à inscrição lavrada na face norte do cruzeiro: «AVE, CRUX SPES UNICA». Assim mesmo, em latim, para ser lida pelos camponeses, pastores e agricultores que, na altura, eram na sua maioria analfabetos. Com efeito eles nada sabiam de escrita e de leitura, mas sabiam tudo sobre gados e ferramentas agrícolas: charruas, arados, roçadoiras de mato e gadanhas de segar fenos. E mais ainda, como pessoas trabalhadoras e honradas que eram pagavam a décima e mais impostos a tempo e horas, sem o Estado lhes dar nada em troca.
A volumetria que este cruzeiro apresenta não será propriamente por acaso. Nem tão pouco o lugar escolhido para a sua ereção. É que olhando nós a carta geográfica (ao lado) constatamos que em redor desse monte ficam as povoações de Lamelas (de Cá e de Lá), de Vila Pouca (antes designada S. Paio, nas Memórias Paroquiais de 1758), dos Braços (de Cá e de Lá) e, mais distante, de Santa Margarida (designada Covelinhas no século XIII, nas Inquirições de D. Afonso III) populações que, ao tempo, usufruíam desse monte, tanto no que respeita ao pastoreio como ao corte de matos para lenha e estrume.
E, tanto quanto reza a memória oral, nem sempre foi pacífico esse usufruto comunitário. Tal como não era, aliás, nas demais povoações do concelho, no tempo em que um molho de lenha cortado fora da demarcação do convénio estipulado pelos antigos, era razão suficiente para zaragata de sangue e até morte de homem.
Designado MONTE CABEÇA, no concelho em Castro Daire, com o símile MONTE DAS CABEÇAS, no concelho de Castro Verde (Alentejo), onde se diz ter acontecido a Batalha de Ourique, em 1139, o topónimo sugeria imediatamente ser ali o sítio indicado para nele se levantar um monumento comemorativo daquele importante facto histórico e dos mais factos que lhe sucederam na cronologia do tempo. Ademais, sendo lugar de discórdias e desentendimentos travados pelos povos vizinhos (todos cristãos) o CRUZEIRO e as suas legendas estariam ali como símbolos pacificadores. As batalhas entre cristãos e mouros eram coisas do passado distante. Os cinco reis mouros tinham ficado sem cabeças na Batalha de Ourique, lá, no Monte das Cabeças. D. Afonso Henriques saiu vitorioso, Portugal tornou-se país INDEPENDENTE e, afastado o Crescente mouro, o Cruzeiro seria o símbolo da INDEPENDÊNCIA e da RESTAURAÇÃO da paz entre todos eles, por forma a cada um confinar o pastoreio dos seus rebanhos ou o corte de matos e lenhas necessárias à parte que lhes correspondia. E se os seus avoengos não se deram ao trabalho de implantar os marcos divisórios, semelhantes aos que balizam as propriedades privadas, lá estavam a exercer essa função os caminhos vicinais mantidos limpos, visíveis e puídos pelo uso.
Não é a primeira vez que encontro matéria histórica e lendária a sugerirem a GEMINAÇÃO dos concelhos de Castro Daire/Castro Verde. O primeiro na Beira Alta e o segundo no Baixo Alentejo. No meu livro «Afonso Henriques, História e Lenda» (editado em 2010) refiro o Monte das Cabeças em Castro Verde e o Monte das Cabeçadas, em Reriz, no qual existe a Ermida de Rodes atribuída ao Ermitão que, em Ourique, aconselhou o nosso primeiro rei a enfrentar os mouros. A essa situação soma-se mais esta, agora.
Sobranceiro a Lamelas, temos o Monte da Cabeça e o CRUZEIRO COMEMORATIVO do «VIII CENTENÁRIO» da Batalha de Ourique, em 1139, ereto ali em 1940, por quem sabia muito de história, de política e mais ainda de LATIM, pois isso ficou gravado na pedra pelo canteiro que, esse sim, ponteiro numa mão e maceta noutra, lhe deu a forma ignorando, seguramente, o significado.
Estas coincidências toponímicas dos MONTES, v.g. das CABEÇAS (em Castro Verde), das CABEÇADAS (em Reriz) e da CABEÇA (em Lamelas) somadas ao comum topónimo "castro", todos eles, de uma forma ou outra associados às façanhas históricas e lendárias a D. Afonso Henriques, são por mais evidentes, para eu, como investigador e historiador, as deixar sem reparo.
E mais ainda. A carta geográfica militar (edição de 1987), como bem se pode ver, designa aquele morro por CABEÇA. Mas os habitantes dos Braços chamam-lhe COVAL. São designações aparentemente antagónicas. CABEÇA remete-nos para algo que está em cima (como é o caso) e Coval para algo que está em baixo (que não é o caso). Mas se tivermos presente a Batalha de Ourique e nos lembrarmos das cabeças dos cinco reis mouros a rolaram por terra, v.g. irem para a cova, em breve se esbate o antagonismo dos termos. E se atribuirmos significado histórico às contendas travadas nos montes por causa dos matos e pastoreio, contendas que chegaram aos meados do século XX, ao meu tempo, cujos contendores se enfrentavam com forcados, estadulhos, gadanhas e forquilhas (lembro o confronto das gentes de Cujó com as de S. Joaninho no sítio do Cadouço, a discutirem a linha divisória das freguesias e do ofício que sobre isso fiz dirigido ao Governador Civil, em 1983) os habitantes dos Braços bem poderiam ter razões sobejas para chamarem COVAL aquele cabeço, onde poderão ter rolado Cabeças.
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