PRIMEIRAQ PARTE
Porque o meu conceito de arqueologia é muito mais abrangente do que a descoberta e o estudo de peças soterradas há muito tempo; porque não sou arqueólogo nem faço uso de tal especialidade académica, mas tão somente um cidadão que não deixa de lançar o seu olhar para tudo quanto, à superfície da terra e na fita do tempo histórico, reveste características de peças arqueológicas, vejo-me obrigado, por força de tal conceito, a referir as lojas comerciais, na vila de Castro Daire, que destoam na forma e no conteúdo da modernidade imposta pela mudança dos tempos.
Vem de longe este meu olhar sobre a relação passado/presente. Tenho dado disso conta em todos os meus livros e, no que respeita à arqueologia, fi-lo com especial destaque no livro «Castro Daire ? Indústria, Técnica e Cultura», editado, em 1995, pela Câmara Municipal. Trabalho e investimento inglório, pois visando preservar alguns moinhos hidráulicos e lagares de azeite que bem podiam servir o «turismo cultural» do concelho, nada foi feito nesse sentido. E pior! Um deles, à beirinha da estrada, um «ex-libris» de cubo vertical, foi mesmo destruído.
Desta vez refiro-me às lojas do «comércio tradicional» não apelando para a sua preservação, mas para delas fazer uma página ilustrada e viva da História Local, um registo para memória futura, antes que o tempo lhes passe a implacável certidão de óbito.
Os dois comerciantes de que aqui falo, e que, por serem uns resistentes, acho dignos de serem postos no mundo da web, são os senhores José Carlos Ferreira Pinto e João Oliveira. Ambos, a bem dizer, viram crescer-lhes os dentes atrás do balcão ou a cumprirem recados que os mais velhos lhes mandavam fazer. Ambos intercalaram o trabalho infantil com os estudos do ensino primário.
O primeiro, cedo começou a medir varas de alpaca, de chita ou cotim na loja do seu pai e nela continua, hoje, (neste ano de 2007) a fazer o mesmo com a simpatia de sempre. Com 71 anos de idade, reconhecendo, embora, o abalo decorrente as novas leis e relações comerciais, mantêm uma clientela conhecida e amiga, inclusive, a companhia do senhor António Augusto da Cunha, com 94 anos de idade, também ele ex-comerciante do ramo, que tendo passado anos atrás de um balcão, junto ao balcão do amigo se sente útil e feliz ajudando a dobrar as peças desarrumadas pelos clientes que gostam de ver tudo e comprar quase nada.
O segundo, de seu nome João de Oliveira, mas mais conhecido por «João da Adelaidinha», feita a 4ª classe e de tabuada na ponta da língua, com 81 anos de idade já feitos, dispensa máquina de calcular e fazendo as contas de cabeça, continua, no estabelecimento designado «Flor do Jardim», a vender mercearias e utensílios domésticos com a solicitude e simpatia de sempre. Mas antes era mais vendida a louça de barro e de esmalte.
Por estas duas lojas passou quase um século de história.
Solicitei-lhes autorização para fotografá-los em plena acção, assegurando-lhes que a sua persistência no ramo de comércio a que dedicaram a suas vidas, por serem as últimas lojas do género a manterem a porta aberta com as características de sempre, merecia ilustrar uma página da História Local, neste mundo de globalização e mudanças em que as tecnologias vão substituindo as pessoas.
Gentilmente acederam ao meu pedido e, dado que uma imagem vale por mil palavras, aqui deixo duas fotos, uma de cada um deles. A ambos o meu agradecimento por não se recusarem ser protagonistas de uma página ilustrada da História Local que persigo, há muitos anos
SEGUNDA PARTE
Na mesma linha se serviço e de préstimo vem a propósito deixar aqui o seguinte respigo. Precisava eu de uma chaminé de vidro para um candeeiro a petróleo que faz parte da minha coleção. «Onde posso comprá-la»? Perguntei aos amigos mais ou menos ligados às «velharias» como eu, ligados àquelas peças carregadas de história, mas que ainda não atingiram o estatuto de «antiguidades». «Vá o Mário dos Cacos, ali junto ao Miradouro, a caminho da Igreja Matriz!»
O «Mário dos Cacos» era o senhor Mário Pinto Monteiro, falecido há pouco tempo com 81 anos de idade. Estabelecido no ramo de mercearias e utensílios domésticos, na sua casa comercial, sita na Rua Comendador Oliveira Baptista, existia tudo o que fizesse falta num lar camponês e vilão, desde o candeeiro ao pavio, do petróleo ao azeite, do arroz ao café torrado, moído ou em grão. Daí o apelido que lhe atribuíram, «Mário dos Cacos». Ele não se ofendia com isso. Prestável e atencioso para com os clientes, sucedeu-lhe a esposa D. Claudina Augusta de Oliveira Monteiro, de 83 anos feitos neste ano de 2007, a quem me dirigi na esperança de adquirir a peça que me faltava.
Que sim, senhor. Era só esperar um bocadinho. Saiu detrás do balcão e foi ao armazém. De regresso, não trazia uma, mas duas chaminés de diferente modelo para eu escolher. Escolhi, paguei e perguntei-lhe se podia tirar-lhe uma fotografia junto do balcão, pois estava certo que o seu tipo de negócio e todas as lojas semelhantes à sua passassem ao domínio da arqueologia.
Consentiu no meu pedido e como estou a fazer o registo das casas comerciais que, em Castro Daire, neste mundo em acelerada mudança, repleto de super e hipermercados, mantiveram as características tradicionais no seu trato com os clientes e que dispõem de produtos que não se encontram nessas grandes superfícies, aqui deixo, para memória futura, o texto e a imagem.