O HOMEM E A HISTÓRIA
Em boa razão poderão perguntar-me o que leva um “socialista, republicano e laico”, natural de Castro Daire, a escrver estas linhas sobre o cidadão cujos traços biográficos se seguem, copiados da Wikipedia. Ora vejam:
«(...) Após o regresso de D. António Ferreira Gomes do exílio, este nomeou-o, em 1969, para Vigário-Geral da Diocese e, nesta situação, dirigiu a revista diocesana ‘Igreja Portucalense’.
(...) Em 16 de julho de 1975, em pleno Verão Quente do PREC, foi nomeado 1.º Bispo de Setúbal, tendo sido ordenado em 26 de outubro. Em Setúbal, encontrou um clima social marcado pela instabilidade e por todo o tipo de carências, tendo procurado comungar vivamente a vida daquele povo em cumprimento, aliás, do lema escolhido na ordenação episcopal: nasci Bispo em Setúbal, agora sou de Setúbal. Aqui anunciarei o Evangelho da justiça e da paz. Com uma presença muito ativa, exerceu a sua ação pastoral até 24 de abril de 1998, numa vertente de serviço, sobretudo dos mais carentes e marginalizados, de tal maneira que algumas autarquias o designaram cidadão honorário, condecorando-o com várias medalhas de mérito, dando o seu nome ao polo de Setúbal da Universidade Moderna e à antiga Escola Secundária n.º 1, localizada na Estrada do Alentejo.
Era conhecido por não ter papas na língua. Divertido, aberto, frontal, não tinha o menor pejo em dizer o que pensava; por exemplo, que dividia os padres em duas classes: Os que acreditam no que dizem e fazem e os que são meros funcionários. Passou a sua vida no meio do povo, sentindo o povo, auscultando-o, sendo povo, sabendo o que ele vive e as situações de desespero em que se encontra.
A sua passagem por Setúbal durou 23 anos, tempo em que a sua figura se impôs como personagem necessária à história contemporânea de uma região que atravessou fases, no mínimo, problemáticas. A sua intervenção nem sempre foi pacífica e foi apelidado de Bispo Vermelho, com toda a carga política que esse epíteto acarreta, numa tentativa de instrumentalização para combater o mediatismo de que usufruiu.
Quando chega a Setúbal, encontra uma cidade de proletários, homens e mulheres que muito se identificavam com o Partido Comunista. Estas pessoas tinham uma aversão tamanha àquilo que chamavam de ostentação da Igreja. No momento em que o novo Bispo era Ordenado, as portas da Igreja eram apedrejadas como forma de revolta e recusa para com tão alto representante da Igreja. Porém, a mestria é capacidade que não lhe faltava e então, por forma a conquistar o povo, abdicou de usar as vestes clericais fora da igreja, e aproximou-se da população mostrando-se solidário com as suas preocupações. Daí se lhe atribui o título de Bispo Vermelho (...)”.
Por disposição testamentária de D. António Ferreira Gomes, era membro da Fundação Spes, da qual foi presidente até 2006. Aquela fundação, cujo nome é a palavra latina para "esperança", resulta de um legado de D. António Ferreira Gomes e dedica-se a contribuir para a Civilização do Amor.
A 8 de junho de 2007, foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo. [4] e ainda pela Assembleia da República com o Galardão dos Direitos Humanos, em 2008.
Morreu em 24 de setembro de 2017, às 14:05 (hora local), em casa de familiares, na Maia.[2]
A 5 de outubro de 2017, foi agraciado, a título póstumo, com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. [4]”.
Posto o que, disposto a satisfazer a curiosidade de todos os que perguntarão o que leva um “socialista, republicano e laico”, natural de Castro Daire, a escrever sobre tão eminente figura pública, eu explico:
Professor que fui, colocado na Escola Preparatória de Castro Verde (Alentejo), em 1976, acompanhei, com simpatia, a pastoral deste Bispo, face às maleitas económico-sociais decorrentes da governança das nossas instituições políticas e religiosas. E sendo ele um bispo “sem papas na língua”, dividindo os seus pares em duas classes, nomeadamente, “os que acreditam no que dizem e fazem, e os que são meros funcionários”, só podia colher a minha simpatia. Era uma verdade de La Palisse que eu conhecia desde os meus tempos de catequese, mas dita por um clérigo daquela “patente”, um general, só podia ser um “revolucionário”, um rebelde. Tinhamos algo de comum, pois rebeldia era coisa que me fluía e flui no sangue desde pequenino.
Quis o destino que eu deixasse Castro Verde e regressasse ao meu concelho de origem, Castro Daire. Um dia, «por mero acaso» (digo bem, acaso, facto que a HISTÓRIA me ensinou a não menosprezar na interpretação de ocorrências de âmbito geral e/ou pessoal) viesse a encontrar-me com ele, em pessoa, no RESTAURANTE ROYAL, que ele frequentava todas as vezes que de Setúbal subia até Reriz e ali, naquela aldeia sita na beira Paiva, fazer uso da moradia que “in vita sua” lhe legara a Dona Nini, sua proprietária.
Feitas as apresentações (eu tenho por hábito dizer claramente quem sou, o que penso e ao que vou) houve momentos para algumas conversas civilizadas, umas mais demoradas, outras menos e até momentos de puros cumprimentos de circunstância. E foi num desses momentos que, um dia, estando eu a sair do restaurante e ele a chegar, estendi-lhe a mão e disse-lhe que “mal ficaria comigo se partisse sem o o cumprimentar”.
Ele, em mangas de camisa, pequenino, franzino, um pingo de gente à minha frente, olhos muito vivos fixos nos meus, gracejou sorrindo: “se fizesse isso cometia um pecado capital”, assim, espirituoso, com humor inteligente, cívico e direi mesmo pedagógico. Outra resposta lhe conheço eu dada a um cidadão que reconhecendo-o lhe perguntou se lhe «dava licença para o cumprimentar». Ele respondeu: «claro, claro e não paga Iva».
Despedi-me. Desapertámos as mãos e eu parti interrogando-me a mim mesmo: como é que naquele corpo tão pequeno, tão franzino, cabia o gigante cuja coragem me habituei a admirar pelas palavras e obras que proferia e praticava, sem receio de o considerarem “fora da caixa?”
E o diabo tece-as. Deixei de encontrar-me com o Reverendíssimo no RESTAURANTE ROYAL e, quando menos o esperava, voltei a estar junto de si, desta vez como aquliniano, nas badanas (cf. foto acima) de um dos livros escritos pelo Dr. Manuel Lima Bastos, sobre Aquilino Ribeiro, cujo republicanismo ninguém terá a veleidade de pôr em causa.
Ambos admiradores de Aquilino Ribeiro, sintonizados no apreço pela obra que o Dr. Manuel Lima Bastos vinha fazendo sobre a obra de tão insigne prosador beirão, no cabeçalho de uma das badanas aparece o excerto de um texto assinado pelo Bispo D. Manuel Martins e, no rodapé, o excerto de um texto assinado por este humilde lenhador na Floresta das Letras. Bondade do Dr. Lima Bastos, que ignorava, em absoluto estes meus encontros ocasionais com tão eminente figura, em Castro Daire. Ficámos novamente perto um do outro, mas, desta vez, a nossa conversa era sobre Aquilino Ribeiro e sobre a releitura que da sua obra vinha fazendo o Dr. Lima Bastos.
Homem do mundo, com olhos no mundo, parte do mundo, como vimos acima, reconheceu-lhe os seus méritos, atribuindo-lhe «in vita sua», ou postumamente, os galardões merecidos.
Mas, apesar disso tudo e das suas visitas frequentes a Castro Daire durante anos, o “bispo vermelho” cirandou por aqui incógnito, “perdido entre as gentes”. Terra muito “católica, apostólica, romana”, não deu nas vistas, não foi chamado a fazer uma palestra, a deixar uma palavra das suas, daquelas que só ele sabia dizer “aos homens de boa vontade”.
Pois. Mas como podia ser de outra forma, se neste concelho nunca se comemorou e “25 de Abril”, nem se festejou “a queda da ditadura? Como poderia haver uma referência a uma pessoa que o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, mal regressou do exílio a que foi forçado por Salazar, nomeou “para Vigário-Geral da Diocese e, nesta situação, dirigiu a revista diocesana ‘Igreja Portucalense?”.
Como podia ele que teve a coragem de enfrentar os poderosos e, apesar de pequenino fisicamente, ser grande na sua postura moral e ética em defesa dos fracos, desprotegidos e sem voz?
Há dias, por «mero acaso», encontrei-me, no Restaurante FIM DE SÉCULO, com o colega JOSÉ LUIS LOUREIRO, mais o pai “MESTRE ZÉ FERREIRO” e, como sempre, indaguei como iam a inspiração e criação de obras de arte, pois nunca me canso de falar com quem algo mais faz no mundo do que “trabalhar para viver e viver para comer”. Ele respondeu-me, para surpresa minha, que a sua última obra, em bronze, estava no Calvário, naquele monte sobranceiro à vila de Castro Daire. Que passasse por lá e veria. Ora eu conheço muito bem o sítio e costumo dizer que quem “visita Castro Daire e não sobe ao Calvário, é como “ir a Roma e não ver o Papa”. Mas, claro, não cirando por ali diariamente.
Entretanto e também por “acaso” encontrei o Abade CARLOS CARIA e dei-lhe conhecimento da conversa tida com o meu colega. Ele esclareceu-me que foi ali colocado um “monumento” alusivo ao Bispo Emérito, D. Manuel Martins. Uma peça de “granito e bronze” com 199x49x14, obra de “j.l.loureiro. Oficina do Zé ferreiro, 2019”
Depois, foi só montar a mota e dar tempo para subir ao morro. Ali chegado fui surpreendido com peça descrita. Olhei, mirei, remirei e li as legendas gravadas no bronze na parte da frente e na parte oposta. Li os textos e observei demoradamente o monumento. Rodei em torno dele, qual romeiro em redor de um templo. Na frente, eis o rosto de uma figura facilmente identificável e na face oposta um texto com o título “MARIA, MÃE”.
Deixo aos leitores a interpretação dos textos gravados, mas era imperdoável da minha parte, passar adiante sem deixar uma palavrinha ligada ao artista que se deu ao trabalho de conceber, desenhar e fundir em bronze, o rosto deste “litle big man”.
Reparem bem. Diferentemente do que é costume, o artista (j.l.loureiro) que é cá da terra, sabendo estar a retratar um bispo diferente dos demais, diferente tinha de ser retratado, mesmo que isso não se notasse quando fotografado ou filmado.
Bem pensado!
Ora vejam bem a foto ao lado e decifrem o mistério. O artista, em vez de nos mostrar a fácies saliente, em relevo, como parece estar na fotografia, fez o contrário. Fundiu em bronze e projetou no futuro o “molde negativo” daquele rosto humano que tão humano e positivo foi “in vita sua”.
Bem pensado!
Só mesmo de um artista, de um criador que absorveu profundamente o espírito da criatura. Foi como se dissesse: “se diferente foste em vida, em carne e osso, diferente permanecerás aqui, depois de morto”. E se pelas praças, ruas e largos do país, é vulgar aparecem rostos em alto-relevo, ou bustos em redondo de figuras importantes, esta figura (bem pensado!) vai ser fundida com o nariz escavado, olhos, boca e lábios afundados, capazes de se tornarem salientes quando fotografados. Um milagre, assim tal qual aqui os deixo representados.
Olhem bem. Isto só visto em presença. De frente, à vista da gente, temos ali implantado um “monumento” diferente dos demais monumentos, como diferente foi o vulto representado.
Em letra redonda aqui fica minha admiração pela criatura, pelo criador e pelo Abade da Paróquia Carlos Caria que, sem recear a figura do «Bispo Vermelho», assemelho ao Abade liberal, natural de Castro Daire, Manuel António de Figueiredo, que, no século XIX, no período revolucionário de 1820, foi o terror dos miguelistas na Diocese de Lamego. E recuando mais na HISTÓRIA ao abade que, no século XVIII (Século das Luzes) deixou colocar no interior da Capela-Mor da Igreja Matriz aqueles painéis de azulejos, com alegorias bíblicas bem pouco canónicos que, por isso serem, remetidos foram para a escuridão, ocultados pelo cadeiral do coro baixo, em 1776, e assim permaneceram (c. de 240 anos) sem nenhum historiador lhe pôr a vista em cima. Descobertos em 2017, fiz sobre eles extensa crónica devidamente ilustrada. E só não vê quem não quer ver Maria Madalena a questionar Cristo no acto da «entrega das chaves do céu a Pedro». Dedo em riste apontado às CHAVES, segredando-lhe ao ouvido: «porquê ele e não eu?»