RETALHOS DE VIDA
Em 19-03-2013 publiquei no meu velho site o texto que se segue. Por ser um espaço online que deixou de estar no ativo por razões a que sou alheio, ainda que se mantenha aberto como repositório do que lá escrevei, graças à gentileza do servidor, para facilitar a vida aos meus seguidores, aqueles que ainda tem alguma dificuldade em navegar neste espaço sideral, cheio de luz, mas também de buracos negros, procedi, hoje mesmo, à sua migração para este meu novo espaço. Assim:
I
Meados do século XX. Ali, naquela cidade costeira banhada pelo Índico, porto de mar aberto ao mundo, cais a abarrotar de bares sem horário, prontos a receberem os marujos dos barcos atracados de fresco, sempre ansiosos por terra firme e mulheres soltas, gira-discos de braço mecânico a rodar, a pôr e tirar música pedida a troco de moedas, ali, dizia, por mais reduzido que fosse o espaço, via-se a humanidade inteira, o homem no seu todo, selvagem, culto, agressivo, viajado, sedentário, alto, baixo, meão, pensativo, bêbado, divertido, nacionalidades várias, machos e fêmeas de todas as idades, raças, credos e cores.
Na antiga Grécia, no porto de Pireu, havia um louco que se julgava dono de todos os barcos atracados no cais. Naquele porto do Índico, os embarcadiços, chegados aos bares, julgavam-se os donos do mundo inteiro e, mal transpusessem as portas vaivém tipo dos saloons do faroeste americano, havia seguramente brequefesta. Homens do mar, curtidos de sol e de sal, sardentos, armados em galarozes de capoeira, a fazer jus aos treinos de recrutas recebidos nas escolas e quartéis, «esquerdo, direito, direito esquerdo, à direita volver, rastejar, em frente marche» alguns a exibirem tatuagens de mulheres nuas, a disputa de uma fêmea era geralmente o pretexto para, num repente, vermos ali uma fita da segunda Guerra Mundial. E o «corta!» ou «the end» do cineasta, digamos, o armistício entre as partes envolvidas, só chegava com a intervenção da PM ou das forças policiais, cuja esquadra ficava, ali mesmo, à mão de semear. Um estado prevenido vale por dois.
II
Um dia (quantos?) acompanhado de um colega de estudos, depois de estarmos horas seguidas a estudar a Grécia, de passarmos em revista os estilos dórico, jónico e coríntio, de circundarmos o Partenon boquiabertos frente aquele exemplo de arquitetura, depois de pararmos frente ao Erecteion, a mirar, em pormenor, as Cariátides, depois de aquilatarmos o conceito de beleza helénica refletida em todas as suas obras, arquitetónicas, escultóricas, filosóficas e literárias, tudo feito com peso, conta e medida, modelos que romanos e povos posteriores, ditos civilizados, copiaram, deixámo-nos de filosofar, deixámos os silogismos de Aristóteles, passámos por Diógenes solitário e enroscado no seu barril e seguimos Epicuro, noite alta, em direção à rua do prazer e do pecado, onde porta sim, porta não, havia espaços noturnos e diurnos de diversão, com mulheres a rodos.
Ora, num lugares desses as fêmeas não se faziam rogadas. Mal nos sentámos, ainda não tínhamos aquecido o assento das cadeiras e já os nossos joelhos recebiam o calor das nádegas de duas Bacantes residentes. A dele, branca, maquilhada de Sofia Loren, modelo muito imitado pelas jovens devido às fitas de cinema em voga, tinha sido arrancada à tela poucas horas antes. A minha, negra, uma vespa sem modelo nos écrans, não fosse ela de carne e osso, não sentisse eu o calor do seu corpo, numa temperatura de fazer subir qualquer termómetro, diria que me tornei dono de uma estátua moldada em pau-preto, saída das mãos de um escultor maconde ou qualquer outro artista banto, que, na vida, jamais vira a Vénus de Milo, nem soubera quem foi Praxiteles ou Míron. As linhas e volumes daquela animada escultura negra, sentada no meu colo, nada tinham a ver com o conceito de beleza hotentote, povo onde a mulher para ser bela e atrativa terá se passar pelo molde «esteotopígio», que o mesmo é dizer, exibir uma bunda natural arrebitada, qual cadeira em vez de cadeira. E também havia dessas belezas no bar. Ali havia de tudo e ali tudo mexia e vivia.
III
«Então, queridinho, não me dedicas um disquinho?» O gira-discos era um mealheiro, uma fonte de rendimento do proprietário do bar, a par das bebidas consumidas nas mesas e algo mais com colchões e lençóis no primeiro andar. E lá me saía do bolso a moeda que entrava na ranhura do gira-discos resguardado dentro de uma vitrina. Lentamente como um robô (robô, que era isso, então?) aquele braço mecânico, do feitio de meia-lua, parecido com uma seitora daquelas que eu, na serra, por estas bandas do Montemuro, usava para segar erva ou centeio antes de atravessar o Equador, aquele braço, dizia, acordava, levantava-se, dirigia-se ao disco pedido, pegava nele, içava-o, dava meia volta e já na posição horizontal descia suavemente até assentar aquela roda de vinil no prato a girar como a mó de um moinho. E logo se enchia o ambiente de calor e música, pois vinha a dança, e vinha a bebida, o champanhe falsificado, e vinha outra dança, e vinha outra bebida, a coca-cola, e vinha mais dança e mais bebidas gaseificadas e por fim, às páginas tantas, lá vinha também o resto. O ar que lá se respirava era uma neblina empestada de tabaco, de essências de perfumes baratos (sempre disponíveis no monhé da esquina), caril, sândalo de mistura com um cheiro a suor e catinga e os vapores sorrateiros dos vulcões intestinais de tanto twist e marrabenta, tudo tolerado somente por pituitárias ébrias de sexo ou insensíveis ao ambiente pela dose exagerada de testosterona. Tais odores, sons, línguas, falas, dialetos e mil sotaques cruzados, impregnavam as paredes, as cortinas, as roupas e todos os demais tarecos do bar, com fortes sinais de muito uso e de conhecimento alargado do cosmos visível e invisível.
Naquela manhã tinham acostado no cais dois navios hasteando, cada qual, as bandeiras nacionais: alemã e inglesa. Naquela noite, a horas tantas, as portas giratórias abriram-se de rompante, pum-catrapum! Pronto. A fita ia começar. Depois da bonança a tempestade. Era tempo de nós abandonarmos a costa. Chegaram os marujos e nós zarpámos porta fora.
Estávamos hospedados na casa de uma senhora que recebia hóspedes com mensalidade estipulada: mil escudos com comida, dormida e roupa lavada. Viúva, experimentada da vida, havia muito tempo que deixara a mocidade a calcorrear as terras vermelhas das savanas africanas na companhia do marido, dedicado à caça grossa, profissão que nunca engrossou os cabedais do casal, pois dinheiro ganhado no mato, nas matas citadinas da jogatina e do putedo se desfazia como manteiga em focinho de cão. Um búfalo, numa caçada azarenta, pô-la viúva. Valeu terem mandado construir aquela moradia. E como o marido, em vida, fez questão se ser sepultado no pequeno espaço ajardinado que separava a rua da porta da entrada, ali estava a pedra tumular do caçador que foi caçado, bem à vista da viúva hospedeira e dos hóspedes que ela acolhia como meio de sobrevivência.
IV
Na hora do almoço do dia seguinte a cada uma dessas nossas noitadas, como mãe conselheira adotiva que nos sabia longe e desprotegidos das nossas mães naturais, perguntava sempre: «meus filhos, por onde andaram ontem à noite? Cuidado com a sífilis». A sífilis era a doença do tempo e a essa senhora não lhe passava despercebido o aroma do prazer, do pecado e do risco da doença exalado pelas roupas que tínhamos despido à chegada e dado para lavar como sempre fazíamos. Nunca esqueci o rosto dessa mulher e, lembrando e escrevendo tudo isto à distância de anos, sabendo-a seguramente desfeita em pó, dada a diferença que tínhamos de idade, e ainda porque, com a descolonização, não restará vestígio algum da campa tumular do caçador caçado sepultado no pátio da casa que foi dele, na casa onde vivi, dormi, comi e convivi, estou em crer que o faço mais em memória da sua simpatia, estima e conselhos, do que impelido pelo instinto animal selvagem que permanece em mim, que não perdi até hoje nos degraus do escadório hominídeo, desde o pátio australopiteco até ao pátio homo sapiens sapiens.