MEMÓRIAS
A lanterna “OLHO DE BOI”, que recentemente recuperei e restaurei, suscitou-me a recolha e comentários sobre mais alguns utensílios ligados à iluminação doméstica, nomeadamente a vela, a pinha, as candeias de espaços interiores e a lanternas de exteriores, necessariamente usadas nas idas aos moinhos e nas regas noturnas dos milheirais.
Esta última, um utensílio de estrutura metálica (geralmente de zinco), tem o especto um templete em miniatura e portátil. De base quadrada e forma retangular ao alto, quatro vidros devidamente emoldurados e protegidos exteriormente por duas meias luas metálicas colocadas em xis, termina em forma de pirâmide, no topo da qual se prende uma argola destinada a pendurar e transportar, conforme as circunstâncias. Esta pirâmide é cravejada de minifuros da base ao topo, por forma a que o oxigénio e o petróleo mantenham viva, no interior, a pequena chama saída da torcida a espreitar no bico da candeia de corpo cónico abrigada no interior, espaço onde entra por uma das faces do templete convertida em portinhola de dobradiças e fecho engenhosamente adequados à função.
Candeia cónica, tampa circular, ali recolhida e resguardada do vento, mais parece uma imagem milagrosa a alumiar as almas penadas deste mundo que, para viverem e comerem o «pão com o suor do seu rosto», obrigadas são a trabalharem de sol a sol e também pela noite adiante, quer seja no cultivo dos cereais, quer seja no transporte e ato de os transformar em farinha, nos moinhos hidráulicos existentes nos rios Calvo, a deslizar aos pés da aldeia e do rio Mau, do outro lado do Santo António, fronteira natural e administrativa dos concelhos de Vila Nova de Paiva e de Castro Daire.
Ora, sabendo eu que «uma imagem vale por mil palavras», e estando este apontamento sobejamente ilustrado, perguntar-me-ão por que razão me retenho a descrever, em pormenor, este utensílio doméstico e a sua função.
Sim, por que faço eu isto? Responderei simplesmente porque que, nem os vídeos, nem as fotografias por mim publicadas, por mais sugestivas que sejam, transmitem a terceiros as sensações que me ficaram na memória, quando esse rudimentar produto da inteligência humana foi, por necessidade de sobrevivência, a extensão do meu braço, do meu olhar e do meu sentir naquelas noites de breu que cobriam a serra e arrepiavam de medo o camponês mais pimpão, jovem ou adulto que fosse.
Sim. Nos tempos que lá vão, nos tempos em que me criei, andar pelos carreiros e caminhos tortuosos da serra e da aldeia, de piso pedregoso e irregular, onde não chegava a luz das estrelas, «nem Jesus rompeu as suas sandálias», não era coisa fácil. Tudo em redor eram as «terras do demo» na designação de Aquilino Ribeiro. E nessas andanças, toda a fonte de luz que fizesse um rasgão no manto negro da noite, além de mostrar onde pôr os pés, afastava os medos e os fantasmas para lá do restrito espaço iluminado. Sim, digo bem, medos e fantasmas. E venha até mim o mais pintado, o mais valentão, dizer-me que nunca teve um arrepio ao ver uma sombra furtiva escapar-se na curva do caminho, ou a espraiar-se ao longo dele; que nunca teve medo, nem se lhe eriçavam os cabelos e, por instantes, suspender a respiração. E desminta esse figurão a sabedoria popular fixada no ditado: “quem tem cu, tem medo”.
Sim. Venham dizer-me o contrário. E venham também desmentir-me o misto de medo, coragem e gozo, que era andar a regar os milhos de noite, de lanterna na mão, pés descalços a ajeitar a água às raízes dos “graeiros”, a terra macia e escorregadia a esgueirar-se por entre os dedos e, ao mesmo tempo, ter a sensação de ser acompanhado, ali, ao vivo, por tantas almas penadas idas, quantas eram os “graeiros” do milheiral. Companhias benignas e benfazejas que, ali, na minha leira da Lameira de Lobos, me faziam esquecer os lobos e perder o medo deles. É que, na minha juventude, havia lobos e eu já contei no texto “O PASTORINHO” (publicado no meu velho site, menu MEMÓRIAS) o susto que um deles me pregou e eu preguei a ele, sendo ainda menino de escola. Eu, sem dizer palavra, mudo e quedo me fiquei a vê-lo quando ele surgiu inesperadamente do meio do nevoeiro. E ele, ao ver-me a mim, tão surpreso quando eu, cheio de medo, «ó abre...!» sumiu-se na manta de nevoeiro que ali o trouxera a fazer pela vida, em busca de alimento. O medo foi, seguramente, recíproco.
Sim, mas voltando às coisas e às pessoas a quem nos afeiçoamos, ou repudiamos, direi que aos objetos com que lidamos, comprados ou herdados, os espaços por onde andamos, são seguramente extensão de nós próprios, das nossas vidas, da vida dos nossos antepassados e mesmo da mente humana que os congeminou e pôs ao nosso dispor, para trabalho ou distração. Muitos ficam guardados e conservados em museus, mantendo, dessa forma, o passado vivo. Outros tantos acabam nas montureiras de lixo ou aterros sanitários, onde encontram sepultura definitiva. Ainda que, quantos deles persistam na memória, já que esta os preserva para aquém da matéria desaparecida.
Mas como sei, nesta minha forma de pensar e agir, que toda a sensação resulta da experiência de vida, e cada um de nós tem a sua mundividência, seguro estou haver muita gente que jamais desfrutou as “cócegas”, que eu senti nos pés, ainda menino, devo confessar que a agradável sensação dada pela terra macia a passar-me entre os dedos (bem distinta da rugosa e áspera arreia das turísticas praias de veraneio) quando, descalço, regava a leira na Lameira de Lobos e me fazia esquecer os lobos e o medo deles, não era a vez primeira. Essa sensação tinha o precedente vivido nos lagares vinícolas das quintas do Douro. Eu vos conto:
Com onze ou doze anos feitos, «menino das cestas», integrado no rancho chefiado pelo meu primo João Reina (João da tia Rosa Abadinha), posto o sol, alinhei na corda dos homens escolhidos para a lagarada noturna. De braços dados uns aos outros (à maneira dos grupos corais alentejanos) ao compasso e ritmo «...esquerdo direito, esquerdo direito...» as uvas, esvaziadas naquele tanque enorme por cestos vindimos levados até lá às costas dos homens, nas quais assentava uma trouxa suspensa na testa por uma larga cilha, iam ficando esmagadas, iam diminuindo de volume, transformadas no vinho mosto que subia...subia...subia…tanque acima.
De ceroulas de linho vestidas (eu( gnorava a existência de cuecas e de fatos de banho) lembro bem a sensação dos bagos a esmagarem-se contra o lastro do lagar, e, no princípio, um formigueiro estranho, nunca sentido, a subir-me pelas pernitas acima.
Estranha sensação essa e lembrança, retidas no cérebro, daquela piscina vermelha onde entrei com as ceroulas brancas e donde saí com elas tingidas. Tudo a troco de um escudo a mais no fim do dia para engrossar o magro salário, necessariamente entregue, inteirinho, aos pais, tostão a tostão. O que era isso? Perguntarão. Façam o favor de ir ao Google. Nessa altura não havia cêntimos nem euros.
Associo esta minha tarefa infantil, esta bebedeira extemporânea das minhas partes baixas, partes pudendas, durante horas alagadas em mosto, e, simultaneamente, à absorção constante dos aromas vinícolas através da pele e das narinas, o facto sério de nunca ter apanhado uma bebedeira na vida. Bem ao contrário de amigos meus que já vi terem-nas e saborearem-nas de caixão à cova. Creio que ter avinhado as virilhas e o resto que nasceu entre elas nessa idade, me bastou para nunca abusar do «licor dos deuses» e dar assim o meu contributo ao volume de exportação que o país faz para o mundo inteiro desse generoso vinho mosto, com a marca do VINHO DO PORTO.
Foi isso. Milho regado à luz da lanterna, colhido, moído e feito pão. Uvas pisadas a pé descalço, feitas mosto e vinho do Porto. Trabalhos do campo e sensações da minha meninice que sei não impressionarem a juventude de hoje, aquela que trocou a enxada e candeia a petróleo e o trabalho infantil pelo ipad, tablete, iphone e computador.
Pois! Mas, assim como assim, eis, em resumo, dois traços dos meus caminhos andados por estes “trilhos do mundo”, neste meu granjeio de “pão e vinho”. Estas minhas sensações e lembranças da juventude ligadas ao campo, trazidas à luz da memória neste meu outono da vida - aos 79 anos de idade - são como que duas pinceladas de Monet e dos artistas da paleta e do pincel que, de forma inovadora, procuraram impressionar o mundo com as cores, traços, gentes e paisagens do mundo rural, tal como vem fazendo, de há uns anos a esta parte, a pintora castrense ELIZABETH GOMES, natural de Soutelo, Castro Daire, segundo o que já vi da sua arte nas exposições que já fez no Museu Municipal desta vila. A ilustração pictórica (composição extraída do seu mural do Facebook) aqui fica a fazer prova disso.