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quinta, 28 janeiro 2016 14:27

RÁDIO LIMITE SUBIU A CUJÓ - ANO DE 1991

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    Há dias uma pessoa amiga que, pelos vistos, se quer dedicar à investigação no concelho, atitude digna de louvar, veio ter comigo a perguntar-me se eu já tinha escrito algo sobre a «história» da «Radio Limite» de Castro Daire, uma vez que vira no meu "curriculum vitae" a minha colaboração naquela Rádio e Presidente que fui da Assembleia Geral. Que não. Não tinha historiado essa instituição. Remeti-a para o senhor António Gonçalves, um dos seus fundadores nos tempos das RÁDIOS PIRATAS,  seu locutor durante anos e eu iria ver o que tinha  escrito, publicado no «Notícias de Castro Daire» e guardado nos meus arquivos. O «disco rígido» do velho CP, talvez mantivesse algo em memória. E manteve mesmo. Aqui vai a crónica publicada em 1991.  

   Grande InformaçãoÉ o dia 14 de Março de 1991. São 21 horas. A "Rádio Limite" de Castro Daire está na freguesia de Cujó, prestes a entrar no ar, prestes a levar ao seu público mais "Uma Grande Informaçäo", o seu programa das quintas-feiras que, de há uns tempos a esta parte, vem realizando, em direto, nas aldeias e freguesias do concelho. Boa iniciativa esta. Iniciativa que não pode deixar de ser louvada por todos aqueles que da comunicação  (oral ou escrita) fazem um veículo de cultura, informação e formação.

Avisado atempadamente o Presidente da Junta, Secundino da Silva Carvalho, eis que os moradores acorrem ao local da emissão dispostos a participar na "festa". Sim, digo bem, FESTA! É que numa aldeia, até há bem pouco tempo conhecida nas redondezas pelo comportamento fechado e desconfiado das suas gentes perante os estranhos, tudo se apresentou diferente. Todos os presentes, ainda que no inicio estivessem um pouco inibidos, se mostraram dispostos a colaborar e a falar para os microfones, esses apêndices da Rádio que tanto susto metem a muita gente.

         Ele foi o grupo de senhoras a cantarem em coro as "modas" do antigamente, senhoras metidas nas suas capuchas de burel, senhoras para quem não há antigamente nesta forma de vestir e naturalmente em muitas formas de pensar; ele foi o toque da concertina, dos ferrinhos, do bombo e da guitarra; ele foi o toque "a solo" do pífaro de lata enferrujada; ele foi o fado tocado e cantado à maneira aldeã, tal como se fazia há muito tempo, antes dos conjuntos ensurdecedores invadirem lugarejos e povoados. Ele foi o "romanceiro" popular a sair fluente da boca da "tia" Elvira, o "romance da pastorinha violada", dez minutos, ininterruptos, de literatura oral  armazenada numa memória nunca importunada por literaturas rebuscadas de autores conhecidos, dez infindáveis minutos de literatura oral para um serão de Rádio, mas tão curta história para um serão de província à volta da lareira, sem livros, nem rádio, nem televisão. Ele foi o "verbo" dos pedreiros, não falado, mas "galrado" pelo velho mestre João Morais, código linguístico só entendido por oficiais do mesmo ofício, código já muito pouco usado, hoje, devido ao desmembramento dessa espécie de confraria, sem compromisso nem estandarte, formada por todos aqueles que na arte de trabalhar o granito encontravam o seu modo de vida, noutros tempos, a par do granjeio das pequenas terras que possuíam; ele foi o modo como se namorava e como iam à Igreja os noivos, o significado do xaile e da capucha que cobria as noivas, o significado do ramo que elas transportavam (ou não) quando casavam. Ele foram as graças do Manuel (um dos repórteres da RL) metido entre os populares, de microfone em punho, a puxar pelos "usos, costumes e tradições" permitindo que fosse longe a "cultura" de Cujó. Ele foram as entrevistas feitas ao presidente da Junta e ao representante da Associação Desportiva e Recreativa "Os Lobos", conduzidas habilmente por António Gonçalves, dando a conhecer as carências e melhorias verificadas na povoação, carências e melhorias do ponto de vista político, desportivo, cultural e económico. Aqui o presidente da Junta esqueceu-se de falar do bairro do Fundo do Lugar e das moradias onde ainda não chegou a eletrificação apesar das diligências que para isso já foram feitas. Ele foi o falar do "Spardoiro", esse forno do povo, onde se marca a vez na fornada com ramos de giesta ou urgueira espetados na parede, qual lista de ESPERA afixada, lida e entendida por todos aqueles que viram as letras passarem longe de si, apesar de anualmente pagarem com pontualidade as suas "décimas", os seus "foros" e as "primícias"; ele foram as queixas dos populares relativas aos maus serviços dos Correios, recordando que Cujó só tem correio duas vezes por semana, quando já tivera, após o 25 de Abril de 1974, correio diário  ao domicílio. Ele foi o contar de histórias de lobos, só não sendo de lobisomens e bruxas porque não houve tempo para isso. Ele foi a queixa de um deficiente motor, António Pereira, a lamentar-se de não poder entrar nas casas de banho públicas da vila de Castro Daire, quando ali se desloca no seu triciclo, dada a estreiteza das portas que não permitem a passagem da sua cadeira de rodas. Ele foi tudo isto e muito mais. Foi a alegria e satisfação de um povo ao sentir que se lembraram dele, ao sentir que o consideraram capaz de ter algo digno de transmitir aos outros, ainda que esse algo tenha sido aprendido mais na vida do que nos livros, ainda que tal aprendizagem tenha sido fruto do suor e do trabalho, saber de experiência feito, resultante da relação trabalho/canto, da relação canto/dança, da relação  indivíduo/comunidade, da relação homem/mulher, este binómio último responsável primeiro pela vida e por tudo o mais que faz parte da vida; ele foi a entrega e agradecimento à Rádio Limite por ter subido à serra, não para cobrar impostos, não para recrutar, à força, jovens para a tropa, não para multar carros de bois sem licença, não para extorquir o produto de quem trabalha, não para pedir votos, mas, tão só, para pedir às pessoas que participassem num programa de Rádio a transmitir em direto, a viva-voz.

Foram três horas de reportagem. Três horas de Grande Informação. Três horas que não chegaram para satisfazer a ânsia comunicativa daquela gente, que queria mais, muito mais. Que fossem mais vezes. Em vez de três horas, três dias, em vez de três dias, três meses... as pessoas tinham muitas coisas para contar, para tocar e para cantar...enfim, para comunicar.

Mas o tempo não perdoa. A emissão fechou à meia noite. Então, de microfones fechados, à volta de uma mesa recheada de salpicão e chouriça caseiros, de queijo caseiro, acompanhados de pão e vinho, a festa continuou até à uma da madrugada. Mais histórias, mais música, mais diálogo. A concertina de José da Silva Pereira, não tocava fados, falava fados. Os ferrinhos e o bombo de pele de cão de um lado e de ovelha de outro, artesanato da terra, mostravam que existiam e tinham uma função. Manuel Pereira e António Pereira (o deficiente) cantam à desgarrada. As atenções prenderam-se às notas e ao canto. Foi um serão em cheio. A televisão, a noite e o sono renderam-se à Rádio Limite, esta jovem intuição que está a dar os primeiros passos da sua História. E eu, que sou de Cujó, que já tanto descobri e escrevi sobre Cujó, com um livro no prelo sobre Cujó, rendo-me também, pois ouvi e (re)aprendi coisas que, escapando à minha pesquisa e a minha infância, coisas que julgando definitivamente perdidas, irrecuperáveis, ou simplesmente não existentes, as vejo com alegria, agora, mas também como um bocadinho de inveja, fazerem parte dos arquivos da Rádio Limite. É bem verdade que há sempre um mundo para descobrir.

Bem haja,  RÁDIO LIMITE!!!


                            Abílio Pereira de Carvalho
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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.