Trilhos Serranos

Está em... Início Crónicas UM LAR, UMA FORTALEZA
quarta, 30 abril 2014 13:23

UM LAR, UMA FORTALEZA

Escrito por 
Enclausurou-se na sua própria moradia, ainda jovem. Foi no Alentejo, na aldeia de Entradas, sita a 10 quilómetros de Castro Verde. Mocidade vivida, família abastada, «clic», de um dia para o outro, muito novo ainda, fechou-se em casa e dali não mais saiu, senão no caixão, em idade avançada. Sempre sentado à janela num cadeirão de almofadas gastas e renovadas, lia todos os dias e jornal e a telefonia, sempre ao seu lado, levava-lhe as notícias fresquinhas noite e dia. Homem do princípio de século XX, chamava-se Manuel Mestre Brito e era tio da minha mulher. Rondaria os 70/75 anos de idade quando o conheci.
Visitei-o algumas vezes. Era um conversador nato, que dava gosto ouvi-lo, pois estando fisicamente fora do mundo, dava mostras cabais de estar dentro dele, todo  vivido, visto e ouvido dali, da sua janela, afora a experiência vivida fora, antes de lhe dar aquela «maluqueira», como diziam alguns.

Quem conhece as vilas alentejanas, sente o aconchego daquelas casas chãs, branquinhas, janelas baixas bordadas de faixa azul, sempre prontas, fechadas ou abertas, a convidarem os vizinhos a meterem conversa. Isso nos tempos que eu o conheci e que havia tempo. Era o que fazia esse meu tio, com a idade da sabedoria.

Herdeiro de propriedades que trazia arrendadas, podia dar-se ao luxo de fazer uma vida de clausura voluntária,  pois os rendimentos, a alimentação e os jornais chegavam-lhe todos dias à mão, sem ele mexer uma palha. Não era anti-social, pois falava com toda a gente que por ali passava. Pedissem-lhe tudo e tudo dava, menos pôr os  pés fora da soleira da porta. Recebia as visitas com a hospitalidade mais natural deste mundo. Já levava muitos anos naquela clausura.

Um dia apostei em minha casa, que ele sairia comigo a ver as terras. Fui visitá-lo com esse propósito. Puxei conversa, floreei, rodeei, falei-lhe dos seus montes, dos seus gados, e não tardou nada estávamos a pisar o lavradio de bota caneleira brochada, estávamos a absorver o aroma das estevas arrumadinhas nos arrifes,  quais canteiros de jardim doméstico, o pó a entrar-nos pelas narinas e ele falar-me das searas e dos asseiros como se visse aquelas ondas de trigo, feitas mar, a cavalgarem e a desaparecerem da nossa vista. A boca abria-se num sorriso rasgado e os olhos brilhavam com aquela luz de quem deita a semente à terra e a vê crescer de mistura com as papoilas e o joio. Isso no tempo em que a lavoura se fazia «a sangue», isto é, à força dos animais atrelados à charrua, em junta única ou em cambão.
Falou-me dos chocalhos de meio metro pendurados no pescoço das vacas, produto artesanal ornamentado com desenhos vegetalistas, chocalhos que tocavam que nem sinos e, lá de Entradas, a dez quilómetros de distância de Castro Verde, anunciavam a sua saída em direcção à vila,  por alturas de feira de Outubro.(ver foto abaixo).

E que tal acompanhar-me e irmos juntos matar saudades e ver as diferenças entre o seu tempo e o de agora? Isso é que não, nem pensar. Todas as desculpas lhe serviam. Do cadeirão é que ele não levantava o cu. Falámos das caçadas, das políticas presentes e passadas. Lúcido e de memória invejável, na sua cabeça estavam armazenados séculos de experiência de vida e de história alentejanas que eu bebi sofregamente.

Mas que cisma aquela de se fechar em casa, que os parentes já não questionavam habituados que estavam a ela e a mim tanto intrigava?
Perdida a aposta, vencido, mas não convencido, tentei desvendar que raio de coisa lhe tinha feito o mundo  para ele se negar a deixar a fortaleza da sua casa. Aquele castelo sem muralhas. Puxei a conversa para a  sua vida pessoal, para a sua juventude, como se divertia a mocidade no seu tempo, no Alentejo. Falei-lhe da minha mocidade,  das terras do norte,  dos ratinhos que iam para as ceifas transtaganas, que sim, que sim, que sabia muito bem, falámos de namoros, de bailaricos e, depois de muito cirandar por Portugal inteiro, ele puxou conversa para os meus escritos no «Jornal do Alentejo» e no «Diário do Alentejo». Sabia que eu publicara, num desses periódicos, algumas décimas populares, resultantes do levantamento oral que andava a fazer na região de Castro Verde.
Ele sabia isso. E eu sabia que ele, em moço, fizera algumas «décimas» que fechara a sete chaves. Pedi-lhe para me dar alguns desses seus manuscritos, se os tivesse guardado. Eu publicaria a sua poesia, se ele o permitisse. Que sim senhor, dar-me-ia algumas das suas obras que, sem cor, amarelecidas com o tempo,  «andavam para ali perdidas nas gavetas ou copeiras». Quando as encontrasse «seriam minhas». Mas só as publicaria depois de ele morrer. Que sim, senhor, promessa feita.

Em 1983 deixei Castro Verde, mas não abandonei o Alentejo. Passaram-se muitos anos. Ele faleceu há muito. As suas propriedades acabaram vendidas e o dinheiro dividido pelos parentes, entre os quais a minha mulher que faleceu em 1997. Papéis.
E papéis, as décimas, ficaram arquivados até hoje, cá em casa também. Outros trabalhos me ocuparam o tempo, mas, desta vez, resolvi cumprir o que prometi, no momento que ele me passou aquelas suas «relíquias mentais e afectivas» para as mãos. E escusado será dizer que numa dessas composições, me parece estar a razão que o levou a fechar-se em casa, desgostoso com o mundo. O problema era dele, não meteu nisso a família, não desabafou, a viva voz, com ninguém. Fechou-se e pronto. Passou a viver assim, apesar de ter tudo na vida para poder vivê-la de forma diferente. Porquê assim? Resistiu a todas as investidas de amigos, familiares e médicos. Era com ele. Os outros não tinham nada a ver com isso. Resistiu a todas as perguntas, mas, recolhido em si próprio, não resistiu ao apelo de uma folha de papel e, como só fazem os poetas e ensimesmados, deixou escrito em verso, o que lhe rasgou alma e lhe fechou as portas dos montes e das herdades, que  lhe fechou os ouvidos ao canto da codorniz, ao cante alentejano em dias de festa ou de trabalhos agrícolas. Que lhe tolheu os pés de pisar as ruas de Entradas e o retiveram na casa de onde ele se recusava sair. Mas cada um é como é. Assim o conheci e como o conheci a ele me reporto com o respeito com que ouvia o que ele me dizia, agradecido por aquilo que ele me transmitiu do seu Alentejo profundo e dos seus profundos afectos. Aquele Alentejo que, afinal, nos meus 74 anos de idade, à beira dos 75, a mesma idade que ele teria na altura, eu poder dizer que era e é também o meu, terra de gente séria, trabalhadora, ensimesmada, de folia, de ratinhos e de malteses em trânsito.

Não longe da cadeira, digamos que sempre à mão, vi os livros de Fernando Namora «A Casa da Malta», «O Trigo e o Joio» e bem perto deles «A Seara e o Vento», o «Fogo e as Cinzas» de Manuel da Fonseca. Falei-lhe de Aquilino Ribeiro, mas dele só conhecia «O Malhadinhas». Emprestara-o e não tivera retorno. Despedimo-nos a falar de letras e de homens de letras. Mas não foi só «O Malhadinhas» que não teve retorno. Também eu não mais voltei ali, àquela fortaleza onde esse meu tio, por afinidade, se tornou voluntariamente o rei e o senhor de um castelo, o seu alcaide-mor sempre de atalaia, à janela, fora e dentro do mundo. Sempre pronto a receber quem chegasse por bem.
Nessa condição me recebeu. E com subtileza bastante ofereceu-me o «segredo» que o levara a enclausurar-se a vida inteira. Perdi a aposta de o fazer sair de casa, mas posso dizer que ele, fechado para toda a gente, se abriu para mim, confiando-me o manuscrito, confiante na minha palavra. Ora vejam:

Fui dentro de uma carneira

Para ver se conhecia

Chocalho-1Os ossos da minha amada
Que dentro dela jazia
 
Entrei no lugar horrendo
Só vi ossos descarnados
Uns com outros misturados
Não os fiquei conhecendo.
Mas todos nós em morrendo
Para ali vai a madeira
Só para ver a caveira
E os ossos do meu amor
Cheio de susto e terror
Fui dentro duma carneira.
 
Assustei-me de me ver
Em cima de tantos ossos
Lembrei-me que eram nossos
Que ali estavam a jazer.
Tive reparo a fazer
Em alguns que ali via
Lembrei-me dos que possuía
Antes de vida findar
Fiquei suspenso a olhar
Para ver se conhecia.
 
Vi diferentes espinhaços
Vi queixadas e caveiras
Muitas costelas inteiras
Outras feitas em pedaços.
Ali vi pernas e braços
Ossos com carne pegada
Mãos e pés com pele mirrada
Que me fizeram entristecer
Mas não pude conhecer
Os ossos da minha amada.
 
Eu fui com um camarada
Ver um templo sagrado
A sair fui obrigado
Ir à carneira lá pegada.
Por dentro foi visitada
Por mim, o outro não ia
Assustei-me porque via
Lá tanto tronco sem rama
Por me lembrar de uma dama
Que dentro dela jazia.
 
Manuel Mestre Brito

Décimas manuscritas assinadas, foram acompanhadas da seguinte nota de rodapé:
ENTRADAS

  

«Estas quadras são dedicadas a uma jovem do meu sítio que faleceu com 15 anos de que eu gostava. Fui acompanhá-la à sepultura e vi bem o lugar onde ficou sepultada. Mais tarde, anos passados, fui a outro funeral, vi a cova substituída de novo, assomei-me à carneira para ver os ossos dessa jovem. Depois fiz estas quadras em 1929».

Que descansem em paz: a mocinha que, por certo foi levada pela pneumónica em 1918/1919, e ele, qual cofre-forte na sua fragilidade humana, guardou a dor e o amor que lhe tinha, vivendo assim, à sua maneira, indiferente e alheio à opinião alheia.

Abílio/2014

 

Ler 2009 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.