PRIMEIRA PARTE

Ele era aquelas fivelas amarelas, a toda a largura da CORREIA ou FIVELAS mais pequenas à largura da cinta recortada a preceito e devidamente embelezada com brochas arredondadas, qual solidéu de bispo. Ele era as campainhas alinhadas, em uma ou em duas fiadas, em escala descendente de timbre agudo para grave, terminando geralmente numa só campainha maior do que as demais, algumas fundidas em forma de sino miniatura, imitação dos sinos gigantes pendurados nas torres sineiras de qualquer basílica real, sé, catedral, igreja de paróquia ou capela e ermida no topo dos montes perdida. Algumas com cruz grega ou latina nos dois lados. Ele era as ROSÁCEAS brochadas no espaço superior às FIVELAS e, no meio delas, a ocupar o espaço, em redondo, sempre ESTRELAS de CINCO, SEIS, SETE e OITO PONTAS, ornamentos que remetem imediatamente para a religião judaico-cristã (estrelas e cruzes) e para heráldica clássica patente em brasões de nobreza, feitos em tecido ou lavrados em granito no frontespício dos solares dispersos por cidades, vilas e quintas, de uma sociedade que fomos.
Os lavradores mais caprichosos e esmerados, nas feiras onde compravam esses adereços, escolhiam não só as CORREIAS mais ORNAMENTADAS, mas também o TIMBRE de cada campaínha, por forma a que o SOM delas, entoado por caminhos, tapadas e lameiros, desde logo, identificassem o dono e a localização do animal em tempo que, pelo calor e pela mosca, ele se refugiava nos matagais.

Perguntei a muitos lavradores o significado de toda aquela ARTE METÁLICA, a enfeitar os seus gados, saída de fundições e correeiros conhecidos ou desconhecidos. E a resposta era sempre: “é bonito. Quantos mais efeites, mais bonito!”
Mal sabiam eles que a pergunta era feita por quem, na sua juventude (eu próprio) teve de fazer uso de um “enxadão” e, nas tapadas do meu pai, arrancar os “tocos” das urgueiras gandarinhas, para com eles fazer carvão, única forma, à data (meados do século XX) de fazer dinheiro para comprar campainhas e pundurá-las no pescoço da “NOSSA VACA ROXA”, animal que mereceu uma extensa crónica publicada neste meu site.
E mal sabiam também os meus interlocutores que eu buscava ali algo mais do que simples enfeites. Induzido pelas leituras académicas eu procurava o sentido HERÁLDICO por eles ignorado, pois, sem letras bastantes, felizes e contentes eram com os ENFEITES visuais do gado que tinham e do timbre identificador daquilo que era seu. Com efeito, naquele metal polido e reluzente luzia o “ego” de cada um deles, de cada família - pai, mãe e filhos - vaidosos das suas identidades, posses e gostos.
Mais profundo era o meu pensar. E a minha primeira ideia foi que, não podendo o camponês colocar uma gargantilha ou colar de pérolas no pescoço da esposa, da amante ou da namorada, sublimava esse desejo, enfeitando o seu gado e, assim, mostrar honradamente o que o distinguia dos demais cidadãos da comunidade serrana. Ou então, sem o saber, herdeiro de “usos, costumes e tradições”, ele exibia uma herança remota e ignota, qual brasão de família possidente, senhorio de terras aforadas por “três vidas” que, no desenrolar da HISTÓRIA, passaram, por remissão dos foros, aos enfiteutas que, algures no tempo, os tornou proprietários, burocracias que foram remetidos definitivamente para os arquivos nacionais ou municipais, só conhecidos dos historiadores.

Mas eu, com tempo e estudo, mirando e remirando aquilo que me intrigava, desde jovem, passei a associar os elementos decorativos das CORREIAS DAS VACAS à HERÁLDICA POPULAR na medida em que para isso me apontavam aquelas ROSÁCEAS, aquelas ESTRELAS e aquelas CRUZES, saídas das FABRIQUETAS DE FUNDIÇÃO com porta aberta, «forja, carvão e fole», por estas aldeias da serra do MONTEMURO e arredores.
Na povoação das Carvalhas, freguesia de Monteiras, existia uma dessas FUNDIÇÕES. Foi lá que levei, algumas vezes, o metal dos fulminantes (espoletas) dos cartuchos usados na caça pelo meu pai, mais o metal das “culotes” desses cartuchos quando eles chegavam ao fim de vida.
Em tempos de pobreza e de miséria, longe da atual sociedade de consumo - do usa e deita fora - tudo era reciclado e todo aquele metal fundido dava campainhas de primeira e do mais fino timbre.
Outra fundição existia no Vilar, freguesia da Ermida, outra em Santarém, freguesia de Cabril, deste lado da serra e ultimamente, descobri que, do outro lado da serra do MONTEMURO, a descambar para o rio Douro, seja em Soutelo e Bustelo, saíram muitas campainhas e FIVELAS para ornamentarem o gado bovino e ovino das redondezas. A de SOUTELO, que vimos na abertura deste texto, identificava-se, por punção, pós fundição, o nome do artesão fundidor ou do proprietário comprador - JOSE MARIA DIAS - dúvida que me ficou por conhecer outros exemplares semelhantes cujo nome inscrito era o do proprietário e não do fundidor. De qualquer forma foi uma dessas FIVELAS e CAMPAINHAS que deram imagem e banda sonora ao vídeo que alojei no Youtube recentemente, o mesmo que me levou a discorrer por escrito o que estou escrevendo. (Cf. Link em rodapé).
Nesse vídeo comparei os ORNAMENTOS BOVÍDEOS do norte com os ORNAMENTOS BOVÍDEOS do sul. E creio estar aqui uma porta aberta para futuras teses de investigação, com assunto bastante sobre antropologia, geografia, psicologia, heráldica, arte, gosto e cultura.
SEGUNDA PARTE
E não é tão despropósito assim, eu trazer para o campo e associar os ornamentos do gado bovino e gaso miúdo à SIMBÓLICA HERÁLDICA, presente nos BRASÕES e ARMAS DA NOBREZA e do CLERO. É só atentar no texto escrito por Fialho de Almeida in “À Esquina” pp 69, citado no Dic. Morais: “…um hálito sem temperatura, insensível à pele, corre entre as ervas bravas dos pousios, troviscos, verdes, rosmaninhais, malmequeres já secos e mirrados, cardos “heráldicos’ em flor”.
Abordagem campesina que me impõe a obrigação de colar aqui o texto retirado da WIKIPEDIA que sintetiza a evolução e abrangência de tais elementos decorativos na trajetória histórica. Assim:
“Nos primeiros séculos de existência da heráldica a adoção de brasões ou escudos era livre, e de modo geral qualquer pessoa podia criar um para uso pessoal ou familiar. Entre os séculos XIII e XIV, com efeito, os brasões se multiplicaram prodigiosamente em todos os estratos sociais, além de identificarem corporações de ofícios, estados, cidades, comunidades leigas e religiosas, irmandades, associações (…) tornando-se uma linguagem visual onipresente e muito apreciada por todos. A partir do século XV as monarquias passaram a tentar regulamentar a criação e uso de brasões através de legislação especial, objetivando restringir sua posse à nobreza e ao alto clero, às autarquias civis e instituições ilustres, mas, salvo em poucos países, essa legislação restritiva teve escasso efeito prático, continuando a serem usados pela plebe extensiva e ininterruptamente até a contemporaneidade. Mesmo assim, esse processo influenciou o desenvolvimento de uma falsa percepção da heráldica como uma prática exclusiva da aristocracia”.
De sublinhar que a “partir do século XV as monarquias passaram a tentar regulamentar a criação e uso de brasões através de legislação especial, objetivando restringir a sua posse à nobreza e ao alto clero”, tempo em que, no âmbito da CULTURA, do RENASCIMENTO DAS LETRAS E DAS ARTES, os HUMANISTAS, estabeleceram a diferença entre «artes liberais» e «artes servis». As primeiras ligadas às LETRAS, adestritas às classes superiores da sociedade e as segundas aos “OFÍFIOS” ligados aos trabalhos básicos de vida, executados pelos homens do POVO, camponeses, agricultores, pastores, ferreiros, correeiros e profissões afins à vida em geral.
CONCLUSÃO
As velhas (e novas) CORREIAS DE CAMPAINHAS destinadas a embelezar o gado bovino, são, para mim, autênticos pergaminhos escritos pelos nossos antepassados ligados às ARTES LIBERAIS e às ARTES SERVIS para utilizarmos a designação adotada pelos HUMANISTAS DE QUINHENTOS.
São uma porta aberta para teses de mestrados, doutoramentos e cursos pós graduação, onde não faltará matéria antropológica, geográfica, psicológica, nobiliárquica, plebeia, comercial, industrial e profissões afins, adestritas ao povo, às gentes produtivas, que na Idade Média, no ordenamento social, muito justamente um pensador da época chamou “os pés do Reino”, aqueles que sustentavam o peso do restante corpo social, v.g. a nobreza cavaleiresca e o alto clero secular. O metal polido e reluzente das rosáceas brochadas, fivelas, estrelas, cruzes e campainhas, neste nosso século XXI, só encontram paralelo nas arqueológicas casacas dos toureiros, nas dalmáticas do clero, debruadas a fios de ouro e prata. E, bem assim, nos “ferros” identificadores das coudelarias e ganadarias existentes no solo pátrio, donde saiem os cavalos e os touros de lide
LINK DO VÍDEO ACIMA REFERIDO:
.https://www.youtube.com/watch?v=jEqGMGbN8wM&t=439s