Passou anos nesta mesa empoleirada. E eu, a subir e descer a escada, olhava para ela, para o cepo, para a aiveca, para o timão e para cada rabiça. E tudo aquilo, chiça!, bulia com o meu sentimento, com esta minha maneira e sensibilidade de ouvir as coisas falar. E não me cansava de perguntar quando arranjava eu um bocadinho de tempo para dar-lhe mais alguns anos de vida e manter essa sua faladura ligada à agricultura. A sua história, a sua glória.
Difícil restauro. Porcas e parafusos calcinados, não havia chave que desse com eles desenroscados. A ferrugem, na seu trabalho severo, fez ninho em tudo o que é ferro e as rabiças e o timão de madeira, prisioneiros assim, não me permitiam a mim, substituí-los. E sem substituição, o seu destino era, seguramente, apodrecerem, assim, naquela prisão.
Triste destino, triste sina. Tanto campo lavrado, tanto pão granjeado, tanto grão semeado, recolhido, malhado, levado ao moinho, feito farinha e pão cozido, tanto “eixe”, tanto “oixe” ditos pelos lavradores às vacas que, naquele seus labores a puxavam nas terras fortes de regadio e entendiam a linguagem que ouviam para andar e para parar e assim, animais e gente, naquela prática, a entenderem-se prefeitamente sem estudarem gramática.
E agora, má sorte, abandonada, terra de pousio, sem uso e sem préstimo por certa só tinha a morte, destinada ao ferro velho. E um dia, acabaria por ser fundida no forno crematório da metalurgia.
Pois. Mas sem pressas. Não é treta. Cercada de poesia e de poetas, as peças de madeira apodrecidas, ali, sem vida, as rabiças pareciam asas caídas de águia ferida por caçador-caçarreta que dá fogo a tudo o que mexe.
Basta de tanto padecer, disse para comigo. Vais ter vida enquanto eu vida tiver.
Um disco de cortar ferro, um berbequim em ação e mãos à obra. Os parafusos calcinados foram cortados e novas asas apareceram fixadas com parafusos novos. O mundo se move e a pandemia, COVID-19, obrigando-me ao confinamento, deu-me tempo de sobra e, neste «fechamento», volvido o pensamento para essa peça de museu, ali empoleirada, nestas minhas caseiras e canseiras liças, comecei pelas rabiças, aproveitando os caixilhos de mogno retirados das janelas, ainda novos e duros como ferro. Fazer neles furos foi ver as brocas fumegar e a destemperar.
Este apontamento, esta primeira atenção, chiça! é o registo ilustrado de como estava cada rabiça. Como estavam e de como estão. A seguir será a vez do timão, pois certo estou de não precisar da geometria euclediana para nele meter mão e restaurá-lo, por devoção à arte e à imagunação humana.
E, professor que sou aposentado, posso garantir que nunca pus de parte qualquer arte, ainda que tenha por certo, ser-me mais fácil carpinteirar, pegar num formão e num martelo, do que fazer um soneto, cuja estrutura (duas quadras e dois tercetos) tive de aprender e ensinar na HISTÓRIA DA LITERATURA.