OLHAR E VER
Na parte sul do concelho de Castro Daire levanta-se o monte de S. Lourenço. Na vertente sul/poente desse monte, quase aconchegada ao topo, alapa-se, soalheira, a aldeia de Casais do Monte, topónimo que lhe adveio, seguramente, do sítio onde nasceu.
Em todo o cimo, o afloramento rochoso que da terra sai crispado, laminado, cortante, lembra as barbatanas dorsais de um monstro adormecido, há séculos, nas margens do rio Paiva. Em cima duma dessas barbatanas, a rematar a cota 929, um marco geodésico. Miradouro natural, olhando à distância e seguindo o movimento dos ponteiros de um relógio, desde o norte ao poente, temos a serra do Montemuro, a serra de Santa Helena, da Nave, da Lapa, da Estrela, do Caramulo e da Gralheira.
Dentro deste perímetro, aninhados onde menos se espera, povoados sem conta polvilham as bacias hidrográficas do Paiva e do Vouga. O casario que de paredes graníticas cobertas de colmo se camuflava na paisagem rural há meio século atrás, berra, hoje, uma existência diferente, atirando para longe o eco das cores brancas e telhados vermelhos de moradias condignas, raspadas do fumo que as coloriu durante séculos. Batalhas, conquistas, revoluções.
Queda da Monarquia-Implantação da República-Ditadura-Abril de 1974. Em 30 anos, apenas, foi-se o pé descalço, chegou o sapato, a gravata e o fato. Chegou a estrada alcatroada. Chegaram a ambulâncias a transportar doentes, idosos e parturientes. Chegaram os transportes municipais a levar a juventude para as escolas. O carro de vacas, companheiro secular do suor camponês, deu lugar aos confortáveis automóveis e outros meios de transporte modernos. Ao casario e às ruas chegaram a água e luz. O saneamento vai chegando. É o país pós Abril em mudança. Os esconsos quelhos públicos, onde, durante séculos, os porcos fossavam livremente os dejectos humanos, desempenhando o profilático papel de agentes de limpeza (os almeidas) foram substituídos pelas casas de banho privadas.
É bom que certos “inteligentes” anti-Abril se não esqueçam disso e, lembrados, moderem as loas que cantam à Ditadura, ao obscurantismo, à ignorância e às indignas condições da vida colectiva portuguesa, salvo as devidas excepções. Se calhar, por dificuldade de pronúncia de algum dos seus membros, o actual Governo resolveu tirar o R da palavra Revolução e comemorar o evento sob o slogan evolução. Adivinha-se a intenção: amputa-se o significante, esvazia-se o significado. A engenhosa aférese apela, seguramente, ao esquecimento do dia da LIBERDADE.
A Revolução não lhes caiu no goto. De resto, a consideração pelo dia e pela cerimónia comemorativa está espelhado na postura do Ministro da Defesa, Dr. Paulo Portas, que aproveitou o momento para exibir a sua arte de mascar pastilha elástica. Que exemplo de evolutivo civismo, de evolutiva cidadania, de evolutiva educação! De nada vale tirar o R. De semântica oposta era como se se pudesse escrever a História sem H., como se se pudesse retirar os SS do passado, ou mesmo o S único, orgulhosamente só da História. Não. Não se pode. A “Histórgia” e a “memórgia” do povo “prgeso”, “rgoto”, “rgasgado”, “rgemendado”, descalço, faminto, “esfargapado”, analfabeto, não podem apagar-se assim. Era o destino, era o Fado, era Fátima, era o Futebol, mas só disso se esquece o desmemoriado, o obtuso ignorante ou o mentiroso chapado. F...F....F...
Isto, então, é um paraíso? Nem pensar. Com o sector primário abandonado, a juventude sem esperança de emprego e melhor vida, só os idosos, e poucos dos que abandonam a escola fora de tempo, se vão ficando como moradores. Os outros, movidos por diferentes aspirações de bem estar, por outro paradigma de vida, por outra bitola de valores, abalam para longe e só, em férias, regressam às berças para matar saudades ou para visitar a família. É o espelho das políticas de desenvolvimento aplicadas ao país pelo Poder Central coadjuvado pelos «reinóis de taifas» que, eleição após eleição, legitimados pelo voto, se têm sucedido a si próprios nas Câmaras Municipais. A eles me referi no meu livro «Julgamento» editado em 2000. Entronizados pelas leis da República estão prestes a perder o trono por força da recente revisão constitucional. O fim do caciquismo não trouxe o fim da mentalidade caciqueira, agora organizada em aparelhos partidários.
E a Constituição parece, enfim, disposta a excluir os “quistos monárquicos” que na República se têm alimentado. Os ventos constitucionais sopram no sentido da arbitragem municipal se sujeitar a novas regras do jogo democrático, contrariando o gosto de certas pessoas para se manterem na cadeira do poder até dela caírem por força do reumático. A limitação dos mandatos autárquicos é, sem dúvida, uma medida acertada e benéfica para a vida colectiva. Uma vez aplicada, ela vai dificultar o alastrar das clientelas, do compadrio e da corrupção cada vez mais notórias e visíveis.
De volta ao monte de S. Lourenço cavalgo um dinossauro que se extinguiu e petrificou nas margens do Paiva. Ali em baixo, bem pertinho, à distância de um voo picado de águia atenta à criação doméstica, está Covelo de Paiva. A montante, sobressai a aldeia de Fráguas e Vila Nova de Paiva. A jusante, a vila de Castro Daire. A Nordeste, lá bem longe, acima de S. Joaninho, destaca-se a povoação de Cujó, a minha terra natal.
Ao mirá-la daqui, recuo cerca de meio século na fita do tempo e encontro-me lá, nas berças, a olhar para cá, a ver as queimadas que todos os anos subiam a encostas S. Lourenço. De noite, acima das labaredas, só chão e céu. Tudo tão distante. Ali terminavam os horizontes físicos do mundo, mas não terminavam os horizontes da minha imaginação, nem os meus sonhos irrequietos de menino. Dessa idade, retenho não apenas essa visão ardente e limitada do mundo físico, mas também um aforismo que estava alicerçado na sabedoria popular acerca do tempo. Na aldeia, nem Borda d’Água, nem Seringador. O boletim meteorológico transmitido pela televisão? Q’al quê! Eram coisas do porvir, nem pensadas, nem sonhadas. Um milagre da inteligência humana! Mas o camponês dispensava tudo isso. Chuvas, neves, codos, boas ou más colheitas, eram lidas nas luas, nos ventos, nas nuvens e nas cristas dos montes. O saber da experiência feito era impresso na literatura oral e, por esta via, passava de geração a geração com a sabedoria e a patente de ditado: «São Lourenço de capelo/capucha no serro/ou chuva no pelo». Estava feito o aviso. Se na crista de S. Lourenço esfarrapasse o nevoeiro, ou o camponês saía de casa prevenido com a capucha, ou regressava ao lar que nem gato pingado.Retorno à minha idade actual e ao topo do monte.
S. Lourenço não é apenas um miradouro donde se desfruta uma deslumbrante panorâmica coberta com os verdes dos lameiros e lenteiros, os matizes da vegetação, o odor amarelo da carqueja e do tojo, a fragrância purpurina da urgueira e da queiró, os côncavos e recôncavos dos vales e montes pintalgados de aldeias, alcarias, quintãs e povoléus; o zumbido invisível das abelhas e o voo encastelado e canoro da laverca, piu...pliu...pliu. ..
Sozinho, empoleirado neste cerro, com muitos anos gastos pelas planuras africanas e alentejanas, aqui, evoco, reverentemente, Miguel Torga: “nasci para falcão da serra, e não para codorniz de baixio.”
Geografia física. Geografia política. Geografia humana. Contrastes. Altos e baixos. Ravinas a subir. Ravinas a descer. Rochedos solitários resistentes às adversidades da vida e, seus contrários, seres rastejantes, coleantes, sempre a adaptar-se às circunstâncias e conveniências do momento. Seres dotados de caracter, de “antes quebrar do que torcer” e, seus contrários, de caracter tão fluído quanto os rios, ribeiros e regatos que daqui descortino. Árvores altaneiras, trepando a serra, pródigos em frutos e sombras. Arbustos rastejantes que só à sombra de algo existem, parasitam e resistem. As forças da natureza e as fragilidades dela.
Cá em cima, binóculos ao peito, vista solta, ensejo de incontados pares de olhos num só par, sem as poeiras atmosféricas das grandes urbes a estorvarem horizontes, quanto me deleito e orgulho de saborear e divulgar as belezas e a história da minha terra! Mão sobre os olhos em pala, fora de alcance estão as Caraíbas. Nem palmeiras, nem cocos, nem praias pejadas de gente e “sombreros” multicolores. Nada disso vejo daqui! Aqui só vejo o que não há lá, mas temos cá, ao alcance da mão, da biqueira da bota ou do exótico tamanco, ainda não remetido, totalmente, às estantes do museu.
Uma paisagem deslumbrante excluída, por agora, do «Roteiro Turístico Concelhio». Qu’é dele? Terras do interior, sociedades periféricas, desconhecidas, ignoradas. Mas já estão aí as IPs, as novas estradas...aquelas que mais levam do que trazem. E as auto-estradas do conhecimento, onde estão? No actual estado de coisas, de duas, uma: ou Castro Daire preserva, promove e divulga o seu património, ou condenado fica a ver passar os comboios do futuro, pouco tendo para oferecer ao turista culto que nos visite. Só folclore não chega.
In “Notícias de Castro Daire“ de 10-05-2014
NOTA: migrado hoje do meu velho site para este.