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quinta, 06 fevereiro 2025 16:37

DOCENTE NA ESCOLA E FORA DELA-4

Escrito por 
ABILIO P. CARVALHO ABILIO P. CARVALHO ABÍLIO

CULTURA POPULAR ALENTEJANA

As minhas andanças por terras de CASTRO VERDE - de 1976 a 1983 - mal chegado de Moçambique (RETORNADO), visando conhecer o meio sócio-económico, histórico e cultural onde fui colocado, seguindo aquele primcípio pedagógico de que “antes do conhecimento do professor chegar ao aluno, deve primeiro o conhecimento do aluno chegar ao professor”,  fui ouvindo e falando com as pessoas que se dispunham a colaborar comigo no trabalho que resolvi levar por diante.

 

Preparado estava eu para abrir as portas de uma ampla biblioteca oral, franca e desinibida, a par de algumas estantes e prateleiras de escrita acanhada, tremida, esgrouvinhada, insegura, espécie de jeira mal lavrada, com cadabulhos onde não chegou bico e arado, nem dente de enxada. Porém cavadelas esforçadas recheados de pensamento crítico, esplanador de paixões, reflexos de vida e de cidadania, prazeres, consolos e desprazeres, espelhos do campo social onde germinaram, floriram e, levadas pela brisa da curiosidade, do saber, fazer-saber, entreter e divertir, se espalharam por todos os lados, praças, vilas, ruas, tavernas, montes e montados.

Pelos caminhos encontrei estevas floridas, flores brancas aveludadas, manchadas, margaridas, malmequeres, papoilas vermelhas a destoarem dos trigais amarelados, doirados, catos verdes, aparentemente agressivos, mas sempre prestes a fermentarem o leite para saborosos queijos, que vi fatiados com canivete em cima do pão, mãos firmes entre os joelhos, usado por pastor, moiral e ganhão, tal qual caçadores de perdizes e de coelhos.

Qual pedinte andarilho necessitado, meti tudo no bornal, sem olhar à quantidade e qualidade da esmola dada. Uma promessa minha ficava em troca da prodigalidade encontrada. Eu jamais iria derespeitar ou humilhar quem tão francamente se dispunha a saciar-me a sede e fome que me moviam por “trancos e barrancos” para proveito meu e dos meus alunos. Antes pelo contrário. Tudo o que me fosse cedido seria enaltecido com verdade, como certidão autêntica de uma comunidade que, tivesse, embora, algumas estrelas a brilharem no firmamento das LETRAS, desde o século XVI - Bernardim Ribeiro, Garcia de Resende, Manuel da Fonseca, Florbela Espanca, entre outras, luzes luminosas a sairem dos compêndios e antologias liceais, a maioria do povo ficou-se pela frouxa luminiscência da lamparina de petróleo ou de azeite. Não era culpa sua. A ler e a escrever em bustrofédon, granjeavam a vida e, agarrados à enxada e à rabiça dos arado puxado “a sangue” - atrelado a bois, vacas, machos ou mulas - e nisso se acomodaram séculos seguidos.

E, tantos anos depois, cá estou a prestar a minha homenagem a todas as pessoas, a todos estes alentejanos que contatei e com quem falei, muitos deles familiares próximos ou remotos da minha esposa, nascida no Monte das Fontainhas, perto de Almeirim, onde aprendeu as primeiras letras do alfabeto.

Nos caminhos, nos campos, nas hortas, nas tavernas, colhi de tudo, incluindo as experiências políticas e literárias de Manuel da Fonseca, nos encontros e “bate-papos” que ele fazia nas escolas que o requisitavam. Foi uma experiência invulgar de vida. Ainda ouço as gargalhadas sadias que se seguiam à “décima” declamada ou cantada. E muitas anedotas pelo meio, só dignas de contar em circuito fechado. Gente sã. Pessoas, letras, gestos e vozes que ficaram comigo. Autores ou declamadores que morreram. Pessoas do seu tempo e do seu espaço, anónimas, ou de renome, deixaram em mim a sua pegada, bem delineada e vincada, ou mal definida, quiçá apagada, com a mais leve aragem que varreu o chão da memória. Umas permanecerão outras virão a ser varridas para sempre. Mesmo as mais luminosas e brilhantes. Poucas resistem à erosão dos tempos e da modernidade. Quantos jovens de hoje, polpa dos polegares calejados a rolarem o tapete dos seus smartphones, iPads, tabletes e quejandos, gastaram algum do seu tempo a observar as pegadas de Bernardim Ribeiro ou de Manuel da Fonseca?

E eles e elas, gente do povo, naquela sua rudeza e humildade campesinas, no gesto e na fala, nem sabiam, nem sonhavam que, dizendo o que sabiam, dando o que tinham, estavam a contribuir para a minha integração social de retornado, mezinhas de terapia contra as sequelas pós-traumáticas resultantes da DESCOLONIZAÇÃO, sequelas tão faladas no campo militar, referidas as ex-militares que, obrigatóriamente, ou em comissão de serviço, na guerra do ultramar, deixaram alguns anos de vida, senão a própria vida, os olhos, pernas e braços) e tão esquecidas no campo civil (retornados que, nas colónias, curtindo febres tropicais, anos seguidos, apostaram fazer nelas a vida inteira, de jovens chegaram a velhos, investindo no património inteletual, rústico ou urbano que foram forçados a deixar, sem nunca terem entendido, a maioria deles, o evento histórico que fez deles objetos da revolução? Sim. Eles também merecem uma referência no radapé da HISTÓRIA.

Hoje trago uma DÉCIMA de Manuel Mestre Brito, de Entradas, poeta popular (meu tio por parte da minha esposa) sobre o qual já fiz extensa crónica com o título “UM LAR, UMA FORTALEZA” alojada neste site. É só investigar.

Desta feita ele coloca a sua lupa num peditório público e discorda do destino que foi dado ao dinheiro. Ele joga irónica e habilmente com as palavras “luz” e “escuridão”, deixando clara a sua opção sobre a melhor aplicação dos dinheiros assim adquiridos.

MOTE

Estamos no século vinte

Ainda a instrução se reduz

Parte do povo às escuras

Para uma Igreja ter luz

I

Pedindo para a caridade

Reverteu a favor da conveniência

Donativos de uma assistência

Não se gastam em eletricidade.

Tira ao benemérito a vontade

De contribuir para o seguinte

Não é para que santo se pinte

Para levar um povo à certa

Deem-lhe instrução de oferta

Estamos no século vinte.

II

Instrução e hospital

É o que o povo deseja

Não é gastar na Igreja

O que faz falta no hospital.

Aonde se vai tratar o mal

Quando na pessoa se introduz

Neste calvário sem cruz

Só se vê a igreja e a bola

Revertendo tanta esmola

Ainda a instrução reduz.

III

O tempo da escuridão

Não acabará o prazo

Ainda haver tanto atraso

Na nossa povoação.

Do que serve a educação

Em muitas das criaturas?

Estão hoje a fazer loucuras

Que em tempos ninguém fazia

Gastar na Igreja energia

Parte do povo às escuras.

IV

Alumiavam os santos a azeite

Hoje é a eletricidade

Do povo a sua bondade

Ainda há quem se aproveite.

Para alguns não foi bem aceite

Veem o efeito que produz

Da minha opinião dispus

Nenhuma falta que faz

Que benefício nos traz

Para uma igreja ter luz?

Manuel Mestre Brito, Entradas, setentro de 1972 (semi-analfabeto)

(Cf. Manuscrito em rodapé, com os CRÉDITOS que recaiem no CONTEÚDO (crítica certeira) e na FORMA (escultura humana, autêntica - Portugal Campesino - esculpida com escopro rombo


  
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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.