CULTURA POPULAR ALENTEJANA
Uma das DÉCIMAS de que muito gostei, produto da recolha da CULTURA POPULAR ALENTEJANA levada a efeito quando exerci a docência em Castro Verde, foi aquela que, numa Taverna de CASÉVEL, prolongamento separado, nas traseiras, da mercearia que dava para a rua, espaço retangular, chão inclinado, mesa comprida ao meio, clientes sentados nos bancos corridos que a ladeavam, ao fundo duas bilhas gigantes de vinho, daquelas bilhas que são o “ex-libris” das tavernas alentejanas, o taverneiro/merceeiro encheu a jarra, distribuíu os copos por todos nós, retirou-se para a mercearia, dizendo:
- Sirvam-se, façam um risco na bilha, todas as vezes que encherem o jarro.
Nem mais. Esgotada aquela jarra, outra e mais outra se seguiu e de cada uma delas ficou um rsico no bojo da bilha. Não me lembro quantos riscos. No fim de tudo, acertaram-se as contas.
Ao meu lado estava um parente da minha esposa, MAFALDA DE BRITO MATOS LANÇA CARVALHO, de seu nome nome, MANUEL PARREIRA LANÇA RAMOS, de 65 anos, natural de Castro Verde. A ele devo a DÉCIMA que hoje aqui deixo, mas não sem primeiro, passar, a letra redonda, o gesto pitoresco que eu nunca tinha visto e vivido, em alguns anos que já levada de vida, ao norte e ao sul do Equador.
Ele meteu a mão num dos bolsos, retirou uma mancheia de grão de bico torrado e atirou-o pela mesa abaixo, assim como quem semeia milho numa courela. E nós, os clientes, seus amigos, fazendo dos nossos dedos indicador e do polegar bicos de trigueirões, levávamos à boca aquele saboroso petisco, empurrado, guela abaixo, pelo bom e fresquinho vinho das bilhas vermelhas, com torneiras nelas.
De gravador ao ombro, cassete virgem e pilhas novas no sítio, disse ao que ia. E, ajudado por Baco ou não, fiz uma excelente colheita. Deixo hoje aqui o “lamento da mula”, na certeza de que, um estudioso a sério, vê na composição algo mais do que a simples rima e clássico esquema rimático das “décimas”. Nela fica bem clara a identificação de dois montes - REGUENGO e JORDANA - e os trabalhos e tratos a que era submetida uma “besta”, nos tempos em que a terra se lavrava e granjeava “a sangue”. Assim:
MOTE
No Reguengo e na Jordana
Nunca estou sem fazer nada
Ao domingo e à semana
Tomaram-me de empreitada
I
Quando me vi amparada
Numa casa de fartura
Julguei de cavalgadura
Comer e não fazer nada.
Tenho sido bem espancada
Chamam-me dona fulana
Chamam-me puta e magana
Auando me dão de comer
Besta não se pode ser
No Reguengo e na Jordana.
II
Em se acabqndo o trabalho
Começam as romarias
Visitas todos os dias
Que me fazem num frangalho.
Aqui está porque ralho
Porque me vejo cansada
Pois dão-me muita mçada
Só o descanso me tarda
Ou de mulim ou de albarda
Nunca estou sem fazer nada.
III
Durante o verão debulho
Estou metida num inferno
Com os arados de inverno
Ainda é maior barulho.
Se às vezes nego o mantulho
É porque me dá na gana
Parto aquela traquitana
Com que me fazem lavrar
O que me custa trabalhar
Ao domingo e à semana.
IV
Os meus donos muitos são
O meu corpo um só é
Nunca me chegam ao pé
Sem vara, chicote, bordão.
Até do peóprio ganhão
Às vezes sou castigada
Se jogo alguma patada
Ou em morder me descuido
Donos, criados e tudo
Tomaram-me de empreitada.
Nota: dita por Manuel Parreira Lança Ramos, 65 anos, Castro Verde. Atribuída ao “tio Belchior”, Ourique-Gare, C. Verde, falecido. Este “tio Belchior”, de C. Verde, mais Manuel de Castro, de Cuba, foram os poetas populares que, da sua lavra, mais semearam e difundiram, no CAMPO ORAL DAS LETRAS, sendo que os recoletores lhes prestavam a devida vénia, com expressões de reconhecimento e admiração.
A FOTO de rodapé doi retirada e adptada da página de José Guerreiro “ALENTEJO - TERA E GENTE”. Data venia.

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