Imprimir esta página
quinta, 23 janeiro 2025 15:32

LITERATURA POPULAR - DOCENTE NA ESCOLA E FORA DELA (2)

Escrito por 

«A ESPIGA» - CULTURA POPULAR ALENTEJANA

Publiquei, ontem mesmo,  um texto sobre uma recolha da CULTURA POPULAR, viva e moribunda, em terras do Alentejo, nos anos em que exerci a docência em Castro Verde e em Beja. Tratava-se de recolher «adágios, adivinhas, lengalengas, trava-línguas e poesia nas suas diversas formas de expressão. Uma delas sobrepunha-se a todas as outras. Eram as «DÉCIMAS», compostas por um  MOTE de quatro versos, seguidas por QUATRO DÉCIMAS, que, rematavam, obrigatoriamente com os versos do mote. Ontem deixei exemplo disso e hoje repito com uma «obra» que é um hino à mulher. Vem mesmo a propósito, dada a violência doméstica com que os tempos nos vão premiando.

 

PRIMEIRA PARTE

Em Beja, durante o meu estágio pedagógico, juntamento com os mais professores formandos, prosseguimos a RECOLHA e, como ESPIGA-CAPAdisse ontem,  elaborámos uma «revista escolar» policopiada a que, por sugestão de um aluno, demos o título «A ESPIGA» e subtítulo «CULTURA POPULAR ALENTEJAMas para melhor se entender essa minha iniciativa em Castro Verde, prosseguida, depois,  em Beja com os demais colegas formandos, convém ter presente o texto que inserimos na própria REVISTA, com a assinatura de Eça de Queirós,  não fossemos nós mal interpretados  pelos demais colegas «eruditos» sobre a tarefa que nos propusemos levar a cabo.  

Reponho aqui o texto, com o devido destaque,  neste princípio do século XXI,  tempo em que os restos mortais do insigne escritor e pensador deixaram a PROVÍNCIA e recolheram ao PANTEÃO, por força de uma MENTALIDADE CENTRALIZADORA  da qual os nossos governantes, sobretudo os intelectuais, afeitos que estão a ela, já nem se dão conta da MAZELA que os afeta, mesmo que, nos mais diversos «foruns» pugnem  pela DESCENTRALIZAÇÃO /REGIONALIZAÇÃO.

 

 

 

«Um país, no fundo sempre uma coisa muito pequena. Compõe-se de um grupo de homens de letras, homens de estado, homens de negócios e homens de clube, que vivem de frequentar o centro da capital. O resto é paisagem que mal se distingue da configuração das vilas ou dos vales. Ê a gente sonolenta de província, que apenas se diferencia das pequenas vielas sujas e tortuosas, onde vegeta, são os homens do campo que mal se destacam das terras trigueiras que semeiam e regam».

Eça de Queirós, cit. por Agostinho dos Reis Monteiro, in «A ideologia pequeno-burguèsa de Eça de Queirós, pp.32»                                                              

SEGUNDA PARTE

INTRODUÇÃO

«Visando um melhor conhecimento do meio local através da componente cultural; procurando contribuir para o romper de fronteiras entra a escola e a vida real, entre a biblioteca viva, "aberta”, que tem por estante o «meio », onde cada homem é um livro, cada comunidade uma enciclopédia e a biblioteca institucionalizada e "fichada", donde  se extrai, por regra, o discurso escolar, nós, professores e alunos, envolvemo-nos na recolha de literatura popular expressa em poesia, lengalengas, adágios e adivinhas.

Com parte do material recolhido e de acordo com os meios técnicos e económicas que a escola pós à nossa disposição, fizemos; "A ESPI­GA".

O título, sugerido por um dos alunos envolvidos na tarefa, naturalmente sem se aperceber das virtualidades semânticas do termo, não podia ser mais adequado ao conteúdo e objetivos do trabalho.

Espiga lembra agricultura, agricultura lembra cultura, já que este termo ( do latim «colo, is, ere, colui, cultum») significa, à nascença, «amanhar a terra ».. Agricultura lembra meio rural (meio onde a nossa escola se insere e lembra também o povo camponês na.ss suas as relações com a terra., problemática de produção e consumo, dependência da Natureza, a religião...

 Espiga, na aceção popular, significa contratempos, adversidades  e de contratempos, contradições humanas e naturais nos falam algumas produções literárias recolhidas e selecionadas.

Espiga, (*) enfim, é morfologicamente um conjunto de grãos, pelo que as lengalengas, adágios, adivinhas e décimas que corporizam esta coletânea, não são mais do que uns tantos grãos da. seara da vida coletiva que não deixará de fornecer alimento espiritual às  gerações futuras, esbatido que seja o conceito de cultura entre nós generali­zado, veiculado pelo discurso escolar normalizado, assenta nos valo­res e "modus vivendi " das classes  «dominantes»".

Da validade do trabalho (simples e despretensioso quanto à impressão, quantidade e valor erudito) falam as composições coletivas que acerca delas elaboraram os nossos alunos que contribuíram para a sua consecução.

0 que eles dizem nos satisfaz».

A matéria recolhida foi distribuída pelo miolo da Revista, menos um manuscrito feito pela aluna ANA SOFIA dedicados aos seus professores de TURMA ,  que aqui reponho em duas fotos, em colunas paralelas correspondentes ao rosto e verso da folha. Assim:

aluna-1


aluna-2

Deixo em letra redonda a «DEDICATÓRIA ao PROFESSOR DE  «ESTUDOS SOCIAIS»:

«Lá vai o professor Abílio

na sua Diana todo lampeiro

Por acaso até é um professor porreiro».

 Admitindo que  «A ESPIGA» e tantos outros trabalhos de então,  não tenham sobrevivido ao «mundo digital» que se seguiu e arquivos dondizentes,  lembrando-me, à distância,  daquela expressão  dita muito frequentemente pelo protagonista principal do filme «Crocodilo Dandy»: «SEM ESPIGA», com isso seignificando, «SEM PROBLEMA», «SEM DIFICULDADE»  aqui estou a deixar, «sem problema», «sem dificuldade»   slguns «respigos» da minha vida docente e ler, na letra da Ana Sofia que, ao menos ela, me tinha por um «professor porreiro».

Hoje a ANA SOFIA será, seguramente, uma uma mulher, mãe de filhos talvez, por isso vem a propósito a DÉCIMA, inclusa na  «A ESPIGA»,  atribuída a António Maria Ramalho, com 72 anos de idade (no ano da recolha), de S. Matias, Beja.

 

MOTE

É como um corpo sem alma

A casa sem ter mulher

Não tem luz dentro de si

Dê-lhe o Sol como lhe der

I

Ó mulher louvado seja

Quem ao mundo te enviou

Bendito quem te dotou

Maldito quem te pragueja.

Lugar onde ela não esteja

Gela o frio, afronta a calma

Só aí levantam palma

Os incómodos da vida

A casa onde ela não lida

É como um corpo sem alma

II

Esse ente, esse anjo adorável

Que Deus fez formosa e bela

Bem-haja, é que sem ela

Era a vida insuportável.

O seu ser indispensável

Tudo em geral o requer

Eu mal direi se disser

Que parece meus senhores

Um covil de malfeitores

A casa sem ter mulher

 

II

Se entre esposo e filhos

A voz materna não soe

Paarece Deus nos perdoe

Uma casa de bandidos.

Se caminham vão perdidos

Uns por aqui, outros por ali

A sorte não lhes sorri

Se jogam não fazem vaza

Cegos que a sua casa

Não tem luz dentro de si.

IV

Não tem luz, está às escuras

Nem luz, nem ordem, nem graça

Tem especto que ameaça

As mais cruéis desventuras.

Só penas, só amarguras

Onde mãe não houver

Onde ela não mantiver

Amor, paz, santa união

É  sempre uma escuridão

 Dê-lhe o sol como lhe der.

 

 

Ler 219 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.