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sexta, 07 fevereiro 2014 16:09

TERRA, HOMENS E ANIMAIS

Escrito por 

Penso que era um Tecktel. De cor preta, pelo curto e luzidio,  orelhas de elefante caídas para o pescoço, face e lábios acastanhados, não era um baixote de pura  raça, igual aqueles que por aí andam a varrer o chão com a barriga, tal como os que vejo no Google, aqueles que lhes falta em altura o que têm a mais de comprimento.
O seu dono, João Codovil, era meu amigo e economista de profissão, a desempenhar funções na Câmara Municipal de Castro Verde.
Às vezes caçávamos juntos e ele, face ao olhar pasmado dos outros caçadores quando viam o seu estranho «perdigueiro», logo fazia questão de mostrar o que ele era capaz de fazer, já que, só de vê-lo e à partida, qualquer caçador de perdizes nunca imaginaria tê-lo por companheiro a atravessar lavradios e descampados de espingarda aperrada pronta a disparar sobre a peça de pelo ou de pena que lhe saltasse à frente e ficasse ao alcance da sua mira.

O leitor imagine-se na planície alentejana a atravessar hectares de terra lavrada e gradada de fresco, em tempo seco, a caminho de um arrife distante, aquele magote de estevas lá ao fundo, onde não entraram as charruas, anos seguidos.

- Jeb, senta aí!

O cão obedecia imediatamente. Assumia aquela postura única de cão sentado, traseiro posto no chão, membros posteriores dobrados, cauda virada para frente a ladear o animal,  membros anteriores direitos como estacas, pescoço esticado, olhar fixo no dono e ei-lo, num instante, fundido ali numa estátua de bronze, em pleno campo aberto.
Nós continuávamos em frente, afastando-nos cada vez mais, e ele só deixava essa postura imóvel, quando, de longe, chegava aos seus ouvidos o apito ultra-sónico com licença para avançar. E então aí vinha ele numa corrida desenfreada em direcção a nós, enrolado na nuvem de pó que fazia dele um moleiro. Preto de seu natural, sacudia-se de tal jeito e, num ai, libertava-se do pó, tal como se libertava da água depois de ir buscar um pato ferido de morte e colocá-lo aos pés do dono. E neste seu gesto, as orelhas, aqueles abanadores enormes, imitavam o som dos remos de um barco a bater na água, manejados por remador inexperiente, plac...plac...plac... remador principiante que pega num remo de barco como quem pega numa pá de meter o pão no forno.

Prosseguíamos. Mas antes de entrarmos no arrife, o João dizia:

- Jeb, senta aí!

E a cena repetia-se. O cão só entrava à ordem do dono no magote das estevas, essa mancha verde no campo lavrado, oásis no deserto, único reduto de defesa das perdizes que ali chegavam a corricar ou por voo. Não aquelas que, cansadas ou por instinto, se ficavam assapadas num rego, ou se disfarçavam coladas um torrão mais saliente, furtando-se, assim, a cães e caçadores.

Diana-Estátua

 

Mas a surpresa das surpresas foi quando esse meu amigo, economista de profissão,  tão hábil a manejar os números e as contas, como a ensinar os cães de caça, adquiriu uma cadela Braque alemã e, querendo treiná-la a solo, sem a influência do Jeb, me pediu para acompanhá-lo. Ele levaria a cadela e eu levaria o Jeb. Como assim? perguntei, espantado. É isso, o Jeb vai consigo. Vai ver.
Entrámos na Renault 4L que ele possuía e, chegados ao sítio, libertados os cães, cartucheira à cinta e armas nas mãos, eis-nos prontos a bater o  terreno. Claro que os dois cães puseram-se, de imediato, a frente do dono.
E foi então que se deu para mim o facto inacreditável. O João Codovil virou-se para o Jeb e disse-lhe, juntando à voz um gesto: «Jeb, vai com o meu amigo». O animal hesitou por instantes, ora a olhar para mim, ora a olhar para ele e, à repetição da ordem, obedeceu e foi colocar-se à minha frente a farejar e a caçar como se eu fosse o seu dono, como se fosse eu a dar-lhe a ração diária e ele quisesse retribuir-me o tratamento,  os afagos e as carícias que recebeu nos anos de vida que já levava.
De quando em vez, ouvindo a voz do dono a dar ordens à cadela, a ensinar-lhe a correr transversalmente o terreno de caça, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda com palavras e acenos, o Jeb parava, olhava,  voltava a olhar, mas continuava à minha frente, muito senhor da sua missão. E a missão era caçar comigo. Não me largou a tarde inteira até à hora de retornarmos ao carro.

Nunca esqueci este episódio demonstrativo da relação homem/animal e nunca perguntei ao meu amigo o tempo, o jeito, o saber e a magia que usou para «instruir» aquele orelhudo baixote que, para qualquer caçador de elite,  ufano do pedigree  e da linhagem do seu Pointer, do seu Navarro, do seu Setter, do seu Português, não valia cinco reis. Alguns conheci eu, bem artilhados, as melhores armas, fecharias completas de platina, vestimentass vestidosas, as melhores botas do mercado, pena de perdiz metida na fita do chapeu, tudo «status», pontaria é que nada. Alguns não acertavam numa porta. Enfim eu podia dizer o que disse Aquilino Ribeiro no seu livro «O Homem da Nave», descrevendo a chegada dos caçadores idos de Viseu, de Aveiro ou do Porto. Acompanhados de «podengos, perdigueiros, grevas, espingardas em seus estojos de cabedal ou lona debruada de coiro, luvas de pele de cão, chapeus de pano aos quadradinhos, com a sua pena  versicolor de ´clubman´ escocês, (...) Em suma uma  tartarinesca comitiva de caçarretas» (pp. 22).
Ambos, eu o João, deixámos Castro Verde. Eu vim para Castro Daire e ele foi para Safara. Nunca mais nos vimos. E tantos anos são já passados. Mas nunca me esqueci do nosso companheirismo de caça e também da ajuda que ele me deu na «acomodação em grelhas» dos números relativos às «receitas» e «despesas» apresentados no meu livro «História de Uma Confraria, 1677-1855», fruto da minha investigação da História Local,  editado por aquele Município, em 1989. Faço-lhe esse agradecimento na última página e aqui o renovo, tantos anos depois, com a certeza de que, no comboio da vida, os passageiros que partilharam a carruagem da sã amizade, mesmo que saídos em apeadeiros diferentes, continuam sempre ao nosso lado, mesmo que definitivamente ausentes.

E presente esteve esse meu amigo nos ensinamentos que eu procurei incutir, anos mais tarde, na minha Diana, a Caçadora, criada por mim desde pequenina. Ensinei-a a caçar, consegui que ela me obedecesse, que avançasse ou recuasse no terreno a mando meu, mas fazer dela uma estátua em pleno campo de caça, é o fazes! Isso é que não. Isso só em casa, no pátio ou varanda, como bem se vê nas fotos que, a par da lembrança e das saudades, a mantêm viva, depois de morta. Uma delas ilustra esta crónica de MEMÓRIAS.

 

POST SRCIPTUM

 Depois deste texto estar escrito, consegui entrar em contacto com o meu amigo e companheiro de caça João Cordovil que, ao tomar conhecimento do seu conteúdo, me mandou um mail corrigindo-me alguns lapsos de memória sobre o comportamento do cão, diz o seu nome completo e explica os seus traços físicos. É o que transcrevo seguidamente, pois o comportamento deste cão perdigueiro traçado, por certo deixa de cara à banda, muitos dos tais que eu referi e vi ufanos do seu pedigree.Eis pois o que me corrigiu o amigo João:

«Amigo Abilio e visitantes do site,

Sou o João Cordovil desta crónica intitulada Terras, Homens e Animais.

Acrescento algumas notas:

  1. A descrição sobre o que se passou à saída do 4L e antes de começarmos a caçar é muito fiel ao que eu próprio recordo e que conto algumas vezes a quem gosta de cães. Com efeito à ordem o Dgebe caçou servindo o companheiro Abilio, sabendo que era essa a minha vontade.
  2.  Vi o Abílio abater, de forma certeira e à minha vista, uma perdiz que o Dgebe tinha achado. Ao cobrá-la o cão olhou para mim, interrogando a quem a devia entregar. Fiz-lhe sinal e lá foi, um pouco contrariado, entregá-la ao Professor Abílio.
  3. . Na altura o Dgebe tinha uns cinco anos. Era excepcional a cobrar de ferido e muito dócil. "Perdigueiro" mestiço, de cor preta, com malhas brancas no peito e nas patas e cor de fogo na cabeça e nos membros (junto ao branco das patas).
  4. O nome Dgebe foi escolhido por associação ao rio Dgebe que corre em zona de grande aptidão para perdizes selvagens.

Um forte abraço ao amigo Abílio!»

 

 

 

 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.