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terça, 27 agosto 2013 20:41

MEMÓRIAS - 1

Escrito por 

VIAGEM DE IDA (Moçambique)

Em Dezembro de sessenta, o «Pátria» da Pátria me leva rumo a Moçambique. Tive por cama um beliche no porão do navio e passei noites e dias a fio sobre as águas do mar. Ó mar salgado quantas lágrimas do teu sal são lágrimas de Portugal.
Debruçado na amurada, olho o horizonte e a vista perco na lonjura. Passada a linha tropical, navegamos na Zona Tórrida. Para trás ficaram na memória, repositório de tudo o que se narra, os turbilhões e as agonias vividos à saída da barra do Tejo. Agora é melhor. Nem uma onda. Em redor em uma gaivota voa ou ronda por perto. É tudo mar e céu. O ar sabe e cheira a mar. Lá, nos confins do horizonte, em sentido contrário ao meu, uma estrada branca rasga o manto azul do céu. Não é a Via Láctea, a Estrada de Santiago que me habituei a observar nas noites estreladas da minha aldeia, depois da ceia. Larga e esfumada no sítio onde se levanta, torna-se condensada, afunilada e na extremidade brilha a cabeça prateada de um alfinete em movimento. Quantas almas voam ali?  Quantas lá e quantas aqui? O mundo move-se no mar e no ar.

PatriaÀ ré, as águas revoltadas pelos hélices parecem uma estrada aberta em terra pelos prisioneiros de galé. De lés a lés, é tudo céu e mar. Espaço que eu tenho toda liberdade de explorar. O resto, não. No navio, a minha liberdade fica limitada ao convés e à sala de refeições, onde a louça, aos baldões, em momentos de mar mexido, encapelado, está tão insegura como as refeições nos estômagos do passageiro enjoado. Proibido me está o acesso à ponte, à piscina, às salas de cinema, teatro e baile. Não entro nelas. Não entro em tudo onde o barco tem janelas. Aí só vi turistas de calção axadrezado, roupa branca de neve, galões dourados atravessados nas extremidades das mangas da farda. Gente grada. Eu viajo em beliche de porão onde a luz do dia entra mortiça pela vigia de água batida. O mar começa a bulir. Onda vai, onda vem, das cristas delas bandos de peixes voadores começam a emergir a cada instante. Parecem andorinhas em voo rasante sobre o caminho a anunciar chuvada, coisa que me habituei a ver de pequenino lá na terra que deixei. Peixes a voarem? Se algum dia imaginei! Zanga-se o mar. O silêncio toma o lugar da conversa. O barco converte-se em balancé e o balanço não é coisa pouca: sobe que sobe a proa, desce que desce a popa e vice-versa e vice-versa e vice-versa. Há desequilíbrios, enjoos, tudo a vomitar, acabou o falatório. O barco tornou-se ambulatório hospitalar. Um horror! É a tormenta do Cabo das Tormentas. Grandes e pequenos, homens e mulheres, velhos, novos e meninos, todos juntos num só rumo, vivem nesta agonia mil destinos. Tantos uis, tantos ais. Coitadas das criancinhas que ali vão sem cor, olhos esbugalhados, doentes, assustadas, interrogativas, apertadas nos braços dos pais. O que elas aguentam, Deus meu! São anjinhos do céu caídos neste inferno. Por elas rabisco estas linhas  no meu caderno. Não é um roteiro. Não é um portulano com marés, correntes e portos assinalados. Tão pouco o registo de latitudes, longitudes e orientação dos ventos. Não é um diário. São notas soltas, pensamentos, contas do meu rosário desfiado nesta minha romagem a Compostela, não a de além-Pirinéus, mas a de além-mar, costa oriental da África, outras terras outros céus, para onde me dirijo sem o cajado que deixei na serra ao pé do gado que pastoreei; sem a cabacinha pendurada no punho que usei e dela bebi na última segada de Junho em que participei.

 Ali, naquele mundo simples e rudo, lia, fazia e aprendia tudo. O despertar sexual. Esta coisa divinal, aquele natural acto de acasalar que os bichinhos, sem querer, ensinavam às meninas e meninos. Era só ver. De cada um, do pardal à calhandra, a sua lição de Tantra. Bastava olhar com atenção. Levezinhas, as libelinhas copulam voando em forma de coração. Ao seu agrado, as cabras-cegas, no sossegado pego do rio, sobrenadam encavalitadas. O galo arrasta a asa à galinha, empoleira-se nela...um  regalo. Com o cio, todos os quadrúpedes, do boi ao bode, cavalgam a fêmea. Ela pode, quer e põe-se a jeito. É o bíblico e geral preceito: «criai-vos e multiplicai-vos». Na eira, uma cadela à queira arrasta atrás dela a matilha da aldeia, até que um cão, lido do exórdio, feito o sermão, se prende a ela por nó-górdio. E, só de ver, coisa não pensada, os órgãos viris dos juvenis observadores de pouca idade, reagem e, não há enganos, em vertiginosa velocidade, enviam ao cérebro (ou será o contrário?)  a mensagem da futura  função, mesmo antes da noção adulta do prazer, corolário dessa reacção e base da humanidade. É a lei da Natureza. Aprendia a malícia dos adultos ensinando os mais inocentes a descodificar o tiroliro amarelo do marantéu, papa-figos, também conhecido por bartolomeu. Três ao desafio, dizendo um: tira-lhe o virgo, respondendo o outro: eu já lho tirei e rematando o terceiro: se não tirava-lho eu.

 Mas, cá vou, o barco da memória me leva. Na bagagem de viagem, metida na mala de porão, revestida a folha-de-flandres, não vão Faraós, Filipes, Dários, Alexandres, Cipiões, Césares, mas algumas lições levo do que aprendi, do que lia nos boletins agrários, no «Borda d’Água», no «Seringador» e noutros almanaques que o meu pai, Salvador, lá na sua, comprava para saber os desígnios do Senhor?  Deus super omnia, sobre o plantio das árvores, da poda, das sementeiras, das mudanças de Lua, dos eclipses, da rega, das colheitas e das feiras. Lia a Rosa do Adro. Os «Evangelhos» de bolso, novos e velhos. Lia poesia, romance, histórias de cavalaria, de instrução moral e cívica, Simão de Mântua, esse mercador de feiras, um sábio, vendendo experiência e sabedoria a esmo a partir da máxima clássica «conhece-te a ti mesmo».

Não há sinais de terra. Roncam as ondas. Que monstros são elas sem forma nem rosto! Rangem as cordas e as velas inchadas, altaneiras, só visto, redondas, em verdade vos digo, imitam barrigas de corpos truncados de raparigas prenhas, cruz de Cristo no umbigo, alinhadas num concurso de mães solteiras degredadas da família, das suas aldeias e brenhas,   na companhia de outros degredados. Marujos queimados do sol e do sal, mãos de sola, barbudos, correm à ordem de capitão-general timoneiro. Qual? Arriba, arriba, gajeiro! Chega a noite e olho é que eu não prego! Pudera! Não vivo uma quimera. No tombadilho atento, não me sai do pensamento o drama do Titanic. Tremo de medo, mas recuso-me assim tão cedo a voar asinho e ledo nas asas da morte e da fama. E que estranha visão a minha se outro navio se aproxima através da noite escura! Os seus mastros gigantes, esguios, iluminados, são cruzeiros andantes, ambulantes sepulturas de aventureiros navegantes, infelizes e malfadados. Vejo as ondas do mar embravecido desfazerem-se possantes, espumantes, no costado do navio. A cada vaga um calafrio. É tão longe Moçambique! Sinto calor, suor e frio. O paquete pode ir a pique e somar mais uma vítima à História Trágico-Marítima. Tenho medo, tenho receio, não tenho da vida seguro, nem bisalho de pedraria para legar a todos os meus como Diogo Gomes fez um dia prestes a deixar a vida, quando a nau  S. Tomé, viajando mais uma vez, quase a ser engolida pelo mar - salgada sepultura de frades,  nobreza,  ralé, misérias e fortunas pelo meio - foi na costa queimada. E os desafortunados viajantes, num escarcéu clamoroso, lancinante, vendo a preciosa carga perdida, vendo o fruto da sua ganância, trabalho, roubo, manigância, pelas ondas do mar tragada, não querendo ficar sem nada do barco desfeito e sem vida extraem a ferrugenta pregadura por ser cousa de cafres estimada e com eles poder ser negociada. Eu não busco seda, especiarias, cravo, pimenta, canela, marfim, prata, ouro puro. Busco  somente o futuro já que a oriental riqueza da Índia a Lisboa chegada indo para Antuérpia e Veneza, ou ficando-se pela rica mesa dos burgueses,   príncipes e reis no distante século dezasseis, o país mergulhou na pobreza dela beneficiando quase nada. Séculos XII, XIV, XVI, XVIII e vinte, uma pátria sempre adiada, embrulhada no negócio do trabalho e da miséria, do ócio e do requinte.
Mas o «Pátria» da Pátria me leva.

A sirene potente apita estrondosamente. É a chegada. Depois da tempestade a bonança. Depois da fadiga o descanso. Tem a natureza as suas artes. Em frente à baía do Espírito Santo, eis a cidade de Lourenço Marques. De planta axadrezada, pombalina, chã, arejada pela índica brisa, ali, no cais, espera-me a minha irmã Elisa e o marido, professor aposentado, ex-caçador de elefantes e de crocodilos: Bertholdo Camacho de seu nome, mil episódios e aventuras vividas no mato. O trato com os régulos das terras, com os carregadores do marfim e das peles, tudo no seu estilo contado aos amigos sempre prontos a ouvi-lo. É Janeiro de sessenta e um. Navegando cheguei aqui, aos antípodas donde parti. Mas não é tudo. Porto de chegada e também de largada. Espera-me a viagem do trabalho e do estudo.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.