LAR DOCE LAR
No monte de lenha arrumada nos fundos da minha casa, com destino a subir à lareira e fazer brasa, neste tempo de confinamento e de frio, encontrei um TACO DE MADEIRA feito por um dos meus filhos quando, noutra idade, esta casa era a sua morada.
De aspeto marcadamente artesanal, o artífice, de pouca idade, não cuidou da sua estética formal, mas, vê-se bem, somente cuidou da função que lhe advém. E o seu irmão, que também existiu seguramente, ou pereceu comido pelo bicho, ou escondido está entre a lenha empilhada, pronta a ser queimada, à espera de ser descoberto. Dois irmãos eram, dois tacos, por certo, ambos fizeram.
Não. Um documento destes, vindo à luz dos meus olhos, caído na minha mão (olhem onde!) nunca seria reduzido carvão e cinzas, mesmo que eu de frio tiritasse e moresse. As chamas e o calor que dele emassem ardendo, breves que fossem, duradouro tormento seria posteriormente, pois queimá-lo era como que queimar a imaginação e a arte postas no seu desenho, no seu corte, queimar a execução e animação do jogador que o fez e o usou, um filho meu. Era apagar a ideia subjacente à sua feitura e desvalorizar a necessidade que exercitou a mente a fabricar o que fazia falta para desporto e distração, em tempos diferentes dos que vieram por bem.
Não. Objeto morto e sem uso, no monte de lenha perdido, pelo bicho visivelmente corroído, não seria o pai que reduziria a carvão a imaginação e a obra de um filho. A isso me escuso. Qual deles foi, eu não sei, nem me interessa. Mas, omessa, sei que foi um deles.
Limpo e posto na bancada, assim, à maneira de quem escreve um poema, livre ficou do pó, do bicho e da fogueira. Limpei-o, fotografei-o, tratei-o e, em vez de queimá-lo, decidi preservá-lo. Original, sem igual no mundo da tacaria, é um documento que tem para mim o significado profundo que em mim porfia, nesta atitude profana, em ver nas ferramentas e objetos a nossa extensão humana. Quantas tacadas deu? Quanto tempo distraiu o seu utilizador? Sei lá! Quantos gritos de satisfação após cada tacada certa, ou finta ao adversário? O passado, uma pinta no calendário da vida.
Acompanhei, com gosto e empenho, o seu início no desporto do “hóquei em patins” em Castro Verde, treinados por um senhor retornado de Angola, experiente nesse desporto e muito estimado pela juventude. A ele se deveu o começo de tal arte naquele concelho alentejano, e treinador foi dos meus filhos. Deslocados para Castro Daire, na idade de ENSINO PRIMÁRIO, à falta de campo no concelho onde praticassem, os patins e a rodela só rolaram, por algum tempo, no reduzido espaço da varanda ladrilhada onde habitámos e depois no pátio e varanda de granito da velha/nova moradia reconstruída. É a vida. E os patins ficaram cá, em casa, para memória, mais o taco artesanal que agora achei, para documentarem a história.
Dito isto, aqui chegados, sem campo para treino e sem lojas comerciais onde se adquirissem os tacos (na sociedade de consumo só se vende o que se consome) não faltavam em casa ripas de madeira que sobraram da reconstrução da velha moradia. E vai daí, riparam da imaginação, mãos no serrote e tesoura de cortar zinco, martelo e arestas disponíveis, em menos de nada tinham TACOS para fingirem ser jogadores de hóquei em patins, a rolarem por toda a superfície plana, dos arredores.
Não fui ouvido, nem achado para isso. Mas achei agora este TACO abandonado, furado do bicho, no meio da lenha destinada à lareira. Ele trouxe-me à memória esses tempos idos e, que mais não fosse, por tudo quanto lembrava e dizia, para o fogo é que não ia. E se eu nada tive a ver com a sua feitura, algo podia acrescentar ao acabamento e formosura. Aparar as esquinas com grosa, cobri-lo com uma camada de verniz, pregar-lhe umas brochas amarelas onde fossem notadas e preservá-lo como documento de um tempo em que as crianças, meninos espertos e ledos, tinham de fazer os brinquedos que, abandonados, se tornaram lembranças e documentos desse tempo, neste tempo solitário de frio, peste e confinamento.
Recuperado, assim, este TACO artesanal foi exposto em lugar (des)tacado e mereceu que sobre ele eu, nestas atitudes que são muito minhas, escrevesse (e com ele ilustrasse) estas linhas.