Neste ano de 2019, andando eu pela serra fora, no encalço dos “POÇANHEIROS”, essas pedras furadas, com semanas de trabalho e arte incorporados, muita martelada de marra e de maceta com incontáveis dentadas de broca e de ponteiro, colocadas nas embocaduras de algumas minas para estancar a água, ou numa das bandas de qualquer tanque ou poça de leira ou de lameiro, por forma a permitirem o esvaziamento automático da água estancada, levou-me a revisitar trabalhos de investigação passados, nomeadamente aqueles que se reportaram aos moinhos hidráulicos e azenhas de azeite de tração animal e/ou energia hidráulica.
Eu já em 1995, no meu livro “Castro Daire, Indústria, Técnica e Cultura”, cujo conteúdo resultou do gozo da minha licença sabática, enquanto professor que era na Escola Preparatória de Castro Daire, deixei bem patente a impressão que me causou um utensílio que, dada a sua delicadeza e leveza, contrastava com a parafernália dos equipamentos rústicos e pesados que, no seu conjunto, constituíam as azenhas, a saber: o pio e as galgas do moinho, mais todas as peças que o faziam girar, a roda motriz, a roda de entrosga e a roda central, todas de madeira e “tornos” desencontrados, na horizontal e na vertical, a servirem de dentes de engrenagem.
Experimentado em tal arte, permiti-me fazer as figuras que ilustram esse meu o livro, as mesmas que hoje aqui apresento, mais acima. Não sem que, com o peso dos anos às costas, me pergunte, 24 anos depois, quanta paciência, quanto tempo e que artes foram as minhas para fazer tudo isto. Só mesmo o empenho de aprender e dar a conhecer algo que tinha passado há HISTÓRIA, mas que, resistindo aos dentes das térmitas e do tempo, ali estava a merecer estudo e divulgação, genuinas peças arqueológicas da nossa INDÚSTRIA MOAGEIRA E LAGAREIRA. Espaços de trabalho, de técnica, de convívio, de entretenimento, de invenção e de cultura. Lembro que peças de teatro foram ensaiadas naqueles espaços e levadas ao palco. Lembro o celebérrimo «bacalhau à lagareiro» que teve nesses mal iluminados locais de convívio e de trabalho as suas origens. Cozinhado e saboreado nesses espaços rurais, lúgubres e de pouca luz, assumiu foros de urbanidade, de citadino e é hoje consumido nos mais iluminados restaurantes sobre alvas toalhas de linho ou similares.
E vem a talhe de foice lembrar que, na execução dos desenhos, do pisão, do moinho hidráulico e das azenhas que ilustram esse meu livro (e deixo mais acima, agora,) valeu-me a aprendizagem que fiz num CURSO NOTURNO que não figura no meu «curriculum vitae» académico e público. Aqui o digo pela primeira vez, respondendo à curiosidade e espanto dos meus filhos que tanto se admiravam, naquela sua idade, de ver o pai, movimentando um simples «rato» de computador, produzir tais obras, sem caneta, nem papel, nem tinta. Foi isso. É que, para tal, dei por bem empregadas as horas da noite que, no longínquo ano de 1962, em Lourenço Marques, lá no outro hemisfério, passei debruçado sobre um estirador colocado numa das salas de aulas do INSTITUTO VICTOR RIBEIRO, na Av. Pinheiro Chagas. De régua e compasso na mão, aprendi a desenhar plantas, alçados e cortes de prédios, fossem eles moradias térreas ou edifícios com andares sobranceiros às demais construções urbanas. A transferência de Lourenço Marques para Tete, fez-me interromper o curso. Parti dali sem qualquer DIPLOMA, mas o saber foi comigo, acompanhou-me durante a vida inteira, passou do himisfério sul para o himisfério norte, ultrapassou o Equador, e veio a ser-me muito útil em 1995 na elaboração destas ilustrações. O «saber não ocupa espaço», diz o ditado antigo, e aqui fica a prova disso.
Se em 1995, munido de máquina de fotografia e um computador em casa (hoje peça de museu), deixei em livro o fruto da minha pesquisa. Em 2019, apetrechado com outros equipamentos mais sofisticados, fui revisitar duas dessas azenhas e decidi-me levá-las ao mundo através da Internet. E, de posse de novas tecnologias e novos meios de comunicação, imperioso se tornava dar protagonismo à minúscula peça que tanto me sensibilizou, na altura. É que, passados tantos anos, com tanto saber e informação disponíveis, procurei e não encontrei tal «coisa» descrita, nem explicada pelo diligente e sabedor Dr. Google, essa ressurgente figura com foros de humanidade, que tem resposta para tudo, que ensina crianças e adultos, intelectuais e analfabetos, políticos e quejandos, que tira todas as dúvidas aos mais curiosos e/ou céticos. Trata-se da tão imaginativa e indispensável peça de lagar que assume o papel de “densímetro” feito simplesmente com uma “palha e uma azeitona”.
É uma espécie de homenagem que faço a todos os lagareiros de outrora, espalhados por este Portugal enfora, junto de um qualquer ribeiro, onde a água a esguichar de uma caleira, de pedra ou de madeira, fizesse girar a roda motriz exterior ao edifício e esta transmitisse o movimento a todo o engenho interno.
Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.