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quinta, 19 janeiro 2017 14:59

TROPA - REGIMENTOS MILITARES,1

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A TROPA, 1

Nesta página de militares para militares, com a aceitação civilizada de nela colaborarem alguns civis, entre os quais me conto, na sequência de uma extensa crónica que publiquei no meu site sobre a NOBREZA DE MÕES (Castro Daire)  na qual menciono o CAPITÃO-MOR daquela vila, não pude deixar de reler os "Regimentos Militares" Tomo II, Lisboa, 1797, nos quais me veio à lembrança expressão "topa-fandanga"  que, de quando em vez, o meu pai, lá na aldeia, usava para caracterizar algo desorganizado. O que não acontecia, seguramente, com as tropas que gastaram as solas na região de Tete e noutras terras de Moçambique.

Ela ficou-me sempre no ouvido e, como gosto de saber o significado das coisas, sempre recorri aos "tira-teimas", conhecidos por dicionários impressos, e, ultimamente, ao senhor "sabe-tudo" Dr. Google. 

Por comodismo do "copy/paste", aqui deixo uma explicação simples e outra mais desenvolvida. A última foi extraída do "Ciberdúvidas da Língua Portuguesa", já que ela me remete para a componente histórica que interessa às reflexões que vão seguir-se sobre a organização das nossas TROPAS, a partir de D. Sebastião, como mais adiante explicarei servindo-me do livro, acima citado.  

a) tropa fandanga:  Grupo de gente indisciplinada, desordeira ou desprezível.

b) tropa-fandanga é formado de duas palavras: o substantivo tropa e o adjetivo fandanga.

Tropa é um termo oriundo do francês troupe, redução de troupeau, «rebanho» (final do séc. XII), provavelmente do latim turba, «multidão em desordem ou movimento». Começou por designar um bando de animais e uma grande quantidade de pessoas juntas, uma multidão. No século XV, já a palavra era utilizada como designação de conjunto de homens de armas: este significado permanece, coexistindo, ao longo dos séculos, com o de grande quantidade de pessoas. No plural (as tropas), o termo passa a designar essencialmente os corpos militares que compõem o exército, o próprio exército, enquanto no singular tem várias aceções, da qual importa aqui a de «bando, multidão». Por curiosidade, refira-se que esta palavra é da família de trupe (tem a mesma etimologia), que significa conjunto de artistas, de comediantes, de pessoas que atuam em conjunto e, ainda, na gíria coimbrã, um grupo de estudantes trajados dispostos a exercer a praxe.

A palavra fandanga é a forma feminina do adjetivo fandango, formado do substantivo que designa a conhecida dança popular sapateada, termo este que entra em Portugal, vindo de Espanha, apenas no século XVIII. Pela conjugação da vivacidade da música, do ritmo, do barulho provocado pela dança e dos que nela participavam, o substantivo fandango passa a ser usado, em sentido figurado, na aceção de «balbúrdia». Surge, então, o adjetivo fandango, com o significado de «ordinário», «desprezível», «caricato», registado em dicionários portugueses no início do século XX.

Cria-se, assim, o termo tropa-fandanga, que significa gente desordenada, indisciplinada, grupo de pessoas que não merecem consideração, gente desprezível".

Posto isto, conhecidos os significados dos dois termos (um a remeter para o século XV e outro para o século XVIII), legítimo é interrogar-nos sobre as razões que levaram a palavra fandango a justapor-se ao termo tropa e não a outro qualquer termo do nosso léxico.  Nunca vi estudo algum que se debruçasse sobre isso e o "Ciberdúvidas da Língua Portuguesa", como acabámos de ver, limitando-se a explicar o significado de cada termo e a sua justaposição, não satisfez a minha curiosidade. Daí que, sem pretender inventar a pólvora (material que, por norma, a tropa não dispensa), eu me tenha decidido a reler os Regimentos de D. Sebastião (1570 e 1574) e encontrar neles a razão por que, mais tarde, o fandango apareça lidado à tropa. 

REGIMENTOS-REDZCom efeito, o nosso jovem rei, pouco antes de desaparecer Alcácer Quibir (em 1578)  procedeu à organização das nossas tropas por forma que cada cidade, vila e concelho pudesse acorrer ao chamamento para a guerra. Vejamos o texto:

"(...) Nas cidades, vilas e concelhos, onde forem presentes os senhores dos mesmos lugares, ou Alcaides Mores, eles por este Regimento, sem mais outra Provisão minha, servirão de Capitães Mores da gente dos tais lugares, não provendo eu outras pessoas que hajam de servir os ditos cargos. E a eleição dos Capitães das Companhias, Alferes, Sargentos e mais oficiais delas se farão em Câmara pelos oficias dela e pessoas que costumam andar na governança dos tais lugares, sendo a isso presentes os ditos Capitães Mores. E nas ditas Câmaras será  dado juramento dos Santos Evangelhos aos Sargentos Mores e aos Capitães de Companhia. alferes, Sargentos e mais Oficiais delas que sirvam os ditos cargos bem, e como cumpre o meu serviço e que se farão assentos nos Livros das Câmaras, assinados pelos ditos Oficiais".

Temos então a comandar as tropas os Alcaides-mores, os capitães-mores, os capitães de companhia, os alferes e os sargentos, sendo que era nas Câmaras da localidade que, excetuando os Alcaides-mores, se procedia à eleição desses cargos. eis o modelo de JURAMENTO do capitão-mor.

JURAMENTO.

Repare-se como ele começa. "Eu foão" (não é gralha, nem engano) é tão só o "F..." que chegou às minutas das nossas repartições, a iniciar qualquer documento. Lembram-se? Aí vai:

 "Eu foão que ora fui eleito por ElRei Nosso Senhor, ou por seu mandado para Capitão Mor da gente de tal lugar que Sua alteza para defensão dele manda armar, juro aos Santos Evangelhos , em que ponho as mãos, que quanto em mim for, serei sempre prestes a dita gente para serviço de Sua Alteza e defensão do dito lugar e obediente a seus mandados como bom e leal vassalo e  favorecerei as justiças e as ajudarei em todos os casos que se oferecerem e por elas me for requerido e em que de minha ajuda tiverem necessidade e  com a dita gente em defensão do dito lugar farei guerra da maneira que por Sua Alteza me for mandado. E assim mesmo juro aos Santos Evangelhos que da dita gente, nem de parte dela usarei, nem me ajudarei em caso algum particular meu, de qualquer qualidade que seja, posto que muito toque e importe à segurança de minha vida ou conservação e acrescentamento de minha honra, nem que toque e importe a algum parente meu, ainda que seja mui chegado, nem algum meu amigo, nem a outra pessoa alguma. 

E de todo o sobredito faço preito e menage a Sua alteza, uma, duas e três vezes, segundo o uso e costume destes Reinos e lhe prometo e me obrigo que o cumpra e guarde inteiramente como acima é dito, sem arte, cautela, engano, nem minguamento algum. E outro sim juro aos Santos Evangelhos que cumprirei e guardarei em todo o meu Regimento e suarei inteiramente da jurisdição que por Sua Alteza me é dada, sem usar de mais outra alguma jurisdição. E por certeza do que dito é assinei aqui de minha mão em tal parte s tantos de tal mês e de tal ano». (...)

E os Capitães das Companhias farão o dito juramento aos Capitães Mores de que outro sim se fará assento pelo Escrivão da Câmara de cada lugar, assinado pelos ditos Capitães e testemunhas, em um Livro que para isso haverá, de que as folhas serão numeradas e assinadas pelo corregedor da Comarca. Os quais livros em que se escreverem os ditos juramentos estarão em muito boa guarda (...)"

 Comandos identificados, juramentos feitos na Câmara, eis algo que não podia deixar de destacar, transcrever e comentar, antes de prosseguirmos a leitura do REGIMENTO. Faço-o porque os "procedimentos" jurados andam tão alheios de nós todos que é oportuno dar à HISTÓRIA o estatuto que merece: uma PROFESSORA sempre disposta a ensinar quem disposto se mostra a aprender. Ora releiam:

"E assim mesmo juro aos Santos Evangelhos que da dita gente, nem de parte dela usarei, nem me ajudarei em caso algum particular meu, de qualquer qualidade que seja, posto que muito toque e importe à segurança de minha vida ou conservação e acrescentamento de minha honra, nem que toque e importe a algum parente meu, ainda que seja mui chegado, nem algum meu amigo, nem a outra pessoa alguma".

Pois é. Hoje toda a gente procede assim. Desde os membros do Governo aos administradores de empresas públicas, Presidentes das Câmaras Municipais e outras instituições espalhadas pelo país, tal como sabemos pelos jornais, televisão e redes sociais. O nepotismo, o compadrio, o amiguismo, o clientelismo  estão fora de moda. Eu tenho perdido algum tempo a vociferar contra isso. Mas desnecessariamente. É só para me entreter. Pois hoje quem é que faz isso? Ninguém. 

O jovem rei, com a cabeça repleta de novelas de cavalaria, ao ponto de enfrentar os mouros em Marrocos com o tipo de tropa que iremos conhecer, não deixava de estar rodeado de conselheiros com calos no rabo, sobejamente conhecedores da essência humana. E este texto, como outros respigos que veremos a seu tempo,  é bem a prova disso.

Comandantes eleitos na Câmara ou providos pelo Rei, o que comandavam eles? Eram as ESQUADRAS, as COMPANHIAS e as BANDEIRAS, assim:

  "E toda a gente que pela dita maneira achar que há na cidade, vila ou concelho, repartirá por esquadras de vinte e cinco em vinte e cinco homens, tomando para isso os mais vizinhos que melhor se possam ajuntar. E para cada esquadra elegerá o Capitão da Companhia um homem da terra que for mais para isso, que seja seu Cabo, ao qual serão obrigados acudir os vinte e cinco da sua esquadra todas as vezes que os ele requerer e em tudo lhe obedecerão segundo a ordem que pelo dito Capitão Mor lhe for dada.

Cada Companhia será de duzentos e cinquenta homens, em que haverá dez esquadras e terá um Capitão, e um alferes e um Sargento e um Meirinho e um Escrivão e dez Cabos.

E ao Capitão da companhia acudirão os dez Cabos de esquadra dela cada vez que cumprir ajuntarem-se ou lhe ele mandar e em tudo lhe obedecerá como a seu Capitão.

 E se o número de gente que assim houver não bastar para se fazerem  todas as ditas Companhias de dez esquadras e faltar na que por derradeiro se houver de fazer alguma esquadra, ou esquadras, terá o dito Capitão esta maneira. Que se faltarem até três esquadras para cumprimento das dez que são necessárias, fará companhia das que ficarem; e faltando mais de três esquadras não fará companhia e repartirá as esquadras que houver pelas outras companhias que estiverem feitas como lhe parecer. E nos lugares em que houver menos de duzentos e cinquenta homens, se ajuntará com eles gente das aldeias e Casais do Termo para fazerem uma Bandeira de duzentos e cinquenta homens, contanto que não estejam em distância de mais de uma légua das cabeças, nem possam per si fazer Bandeira. E nos mais lugares em que por esta maneira se não puderem fazer os ditos duzentos e cinquenta homens se fará todavia companhia de duzentos e de cento e cinquenta e de cento.

E nos lugares e freguesias em que não houver cumprimento de cem homens, nem se puderem comodamente ajuntar aos outros lugares vizinhos conforme este Regimento se farão somente Cabos de Esquadra que tenha cada um a seu cargo vinte e cinco homens, conforme o acima dito. E aos ditos Cabos exercitar pela ordem deste Regimento; não havendo gente para duas esquadras se ajuntará toda a uma esquadra ou as que houver.

E nos Lugares do Termo que estiverem fora da dita légua se guardará a ordem acima dita no fazer das companhias.

Eis, pois, como estava estruturado o exército com que contava D. Sebastião. Já vislumbrámos que cada moradia de vassalo era um quartel, fosse nas cidades, nas vilas e aldeias concelhias. E reportando-me às aldeias alcandoradas nas vertentes da serra do Montemuro e arredores, vejo bem a dificuldade tornar operacionais as células militares estatuídas. E naturalmente as influência de pessoas gradas a interferir, a pedido dos interessados, na fuga à Ordenança.  Havemos saber mais, quando presenciarmos o exercício militar que preparava toda esta gente para a guerra. (CONTINUA)

 

NOTA: texto destinado à página PICADAS DE TETE do Facebook

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.