LETRAS VIVAS
Se algum dia, nos meses de maio e junho, de qualquer ano, atravessou a serra do Montemuro e arredores e lhe escapou da vista a sua vestimenta natural de cores várias próximas e distantes. Se fez isso e não sentiu os inebriantes odores lilás, amarelo, verde, branco e demais exalados por tudo o que é ornamento arbustivo que alinda montes e outeiros - deixou escapar, seguramente, a magia da montanha parida pelas giestas brancas e amarelas, sargaços cinzentos, urgueiras lilás e brancas, a queiró lilás, o tojo amarelo/verde, tudo isto, nascido a esmo, jardim natural, cosido ao chão, obra de imaginário tecelão que, seguramente, inspirou as rendas e os brocados exuberantes, prateados e dourados, das dalmáticas clericais e das jaquetas de toureiros nas suas relações lúdicas com animais e gentes.
Mas se lhe escapou tal beleza igualmente lhe escapou o valioso préstimo que todos estes arbustos têm na vida do camponês. Para além de alimento para os gados, eles servem para lenhas, estrumes e das raízes da urgueira gandarinha (“Erica Australis” na classificação de Lineu) se fazia carvão, a principal fonte de energia utilizada nas forjas de ferreiros (tantas e tantos) e lareiras de mosteiros e solares senhoriais.

Nado e criado numa aldeia serrana, CUJÓ de seu nome, concelho de Castro Daire, cedo aprendi a absorver, pelos sentidos e pela reflexão, descalço, pé assente no chão, toda essa beleza, noite e dia. E nessa academia da vida, instituição onde se entrava sem exame de admissão, a par da pastorícia e da agricultura se incluía também a cadeira da arte de fazer carvão, uma forma de “cunhar” dinheiro, onde dinheiro não havia.
Os ferreiros, com tenda acesa em tempos de invernia, agarrados à tenaz, ao malho, martelo e bigorna e o fole a assoprar a pedir alimento de combustão, pagavam, na hora, a quem lhe levasse carvão de torga. Pó e poeira tudo o que desse peso e barriga aos sacos de serapilheira.
E eu me lembro bem o que fiz e o que levei.

Feita a permuta, foi a vez primeira que, como quem ainda escuta, ouvi tilintar na algibeira moeda sonante, dinheiro metálico meu, “cunhado” por mim, assim, ofegante, a suar, a queimar raízes de urgueira. E que objetivos bailavam, então, na minha cabeça, ó gente? Tão somente pendurar algumas campainhas no pescoço das vacas do meu pai, adquirir um relógio de pulso e comprar uma caneta de tinta permanente. Pormenores? Quanto tempo já lá vai, senhores!

Não era tarefa fácil. Ela exigia experiência, aprendizagem e força muscular para manejar as ferramentas necessárias. Escolhida que fosse a tapada, eleito o urgueiral com “tocos” bastantes, a tarefa exigia, desde logo, uma enxada, um enxadão e uma alavanca de ferro. E apraz-me dizer que, desde rapaz, vi em todas as ferramentas de trabalho, desde o simples e frágil canivete ao tosco e vigoroso traçador do madeireiro, a extensão material da inteligência humana, congeminadas para facilitarem as nossas tarefas quotidianas.
Acção primeira: o derrube da rama da urgueira. Rama cortada era lenha seca que tinha por destino a caminho da lareira. No solo ficavam as raízes, as torgas, os “tocos”, tudo pronto a arrancar com a ajuda do enxadão e da alavanca de pedreiro. Cada raiz escavada em torno, cavadela após cavadela, puxa-que-puxa, suor a pingar no chão, era ver subir o montão delas, eriçadas, na terra cavada, prontas a entrarem na cova aberta previamente ou herdada de anterior serventia. Dois metros de diâmetro e um de fundo. Para quem não saiba e agora veja, ó senhores, como num filme a cores, a cova, da boca ao fundo, imitava um hemisfério do mapa-mundo, meia calote do globo terreste em miniatura, uma tina, uma espécie de cúpula invertida de igreja bizantina. E não faltavam covas por essa serra fora, quantas? Lá mais para diante hei-de falar das antas, das mamoas, dos túmulos dos nossos antepassados distantes, povoadores da serra e da terra que herdámos. Que tais construções existiam, eu nem sequer sabia, por isso, mais correta analogia eram os montículos de terra levantados nos lameiros e terra de sementeira, labor subterrâneio e cego da toupeira.

Cova aberta, “tocos” prontos a entrarem nela, colocavam-se no fundo alguns chamiços, tipo acendalha. Empilhava-se a primeira camada. Bem empilhada, pegado o fogo, não tardava a termos ali um braseiro, uma fornalha. Torgas tornadas brasas, sobre elas se empilhava a segunda camada. A primeira pegava fogo à segunda e, no momento certo, lousas e terra de cerco, em redondo, abafavam o braseiro incandescente. Sem oxigénio, lentamente, o braseiro da primeira camada carbonizava e virava ouro negro. E assim até ao fim, com arte e jeito. Um milagre de paciência e de “saber de experiência feito”.
E, carvoeiro, profissional ou aprendiz que se prezasse, rezasse ou não rezasse para ser bem-sucedido, sempre perto, ó que arte aquela de abafar em tempo certo a camada incansdescente; ó que ciência, fazer de raízes carbonizadas energia em potência. Que paciência, que saber manter aceso o fogo ascendente, camada após camada. Que cálculo, que tino, interromper a combustão no momento adequado, sem lição de livro aberto ou fechado. Ciência que cada carvoeiro aprendia na cova e para a cova levava. Nada escrito. Só visto e dito. Por isso, a pretexto, escrevo este texto. A partir de agora fica escrito.

Por vezes (vem a propósito lembrar) que para melhor acomodação e empilhamento das torgas, tipo “soenga” de oleiro, rachavam-se os tocos ao meio, com a ajuda de um machado. E abertas assim as duas metades - ó que emoção me traz este assunto, - faziam lembrar nacos de presunto vermelho, um regalo, mais de comê-lo do que queimá-lo. Irónica analogia esta! É que sendo o presunto e toda a carne fumada um produto raro e caro na aldeia, carne de festa, era isso que via e me apetecia. Mas que ideia, que sensação? E lá vinha o adágio, “foi por ser poupadinho, que a carne do meu porquinho me chegou ao Entrudinho”. Ali, naquele chão, que sarilho, nem febra, nem sucolento toucinho. Só pão, côdea rija de broa de milho.
Enfim. Fogueira acesa, é deste modo, é assim o começo do inferno para as raízes mortas da urgueira gandarinha, (Erica australis, segundo L.), planta que, em vida, toda florida, pintou a serra de violeta.
Mas ela, a urgueira gandarinha, se tinha por destino e sorte competir na jardinagem e floração da serra com a sua irmã “reagueda» de flor branca, não a tinha como parceira na morte. Só ela dava torga para carvão, só ela podia tornar-se energia em potência, que, assim preparada, carbonizada e ensacada, viajava quilómetros até, em tempo posterior, num qualquer dia, ser ativada e libertar o calor e a força que em si escondia.
Digo tudo isto por obrigação de ofício. A minha experiência na arte de fazer carvão já ficou nas páginas do livro “ESTER, PEGADAS NO TEMPO”, quando me veio à mão o libelo judicial entre as povoações de Ester e Pinheiro, disputando, em tribunal, a posse “imemorial” de baldios montemuranos propícios a pastos, lenhas e carvão.
A arte de carvoaria, exige, pois, saber e experiência acumulados. São horas a fio na tarefa de empilha, põe, compõe, ajeita, queima e tira. São séculos de vida e de história, transmitida de geração em geração. E cada queimada, cada cova de carvão, cada fornada, só terminava quando a última lousa tapava a chaminé, digamos, quando se rematava a cúpula daquele templo com o inferno dentro. A tampa abafadeira.
Feito isso, cúpula térrea levantada do chão, cabe à enxada a tarefa de atirar terra para os sítios onde línguas dançantes de fumo, levadas pelo rumo da aragem, davam sinal de quererem libertar-se do ovo onde estavam prisioneiras. Se, por descuido ou pressa, ficasse um só respiro, o resultado não era coisa linda ver. Eram dias de trabalho e suor vertidos em cinza. Pó, terra, cinza, nada, depois de tanto suor e trabalho.
Por isso, o carvoeiro profissional ou aprendiz, antes de abandonar o local e a obra, mirava-a, remirava-a e, fazendo tempo, dava uma olhadela pela paisagem adiante. E via por todo o lado, por toda a serra, montes e outeriros, colunas de fumarolas, um sem número de montículos semelhantes, a lembrarem as mamoas pré-históricas, túmulos/templos deixadas pelos nossos antepassados distantes, construções, como eu disse acima, nem sequer conhecia.
Pouco tempo. Alguns dias após desfazia-se da tenda. Terra e lousas retiradas com cuidado, saco aberto ao lado, pá de pedreiro perto, o ouro negro assim garimpado no filão da serra do Montemuro e arredores, era dinheiro seguro, estava pronto para servir nas forjas dos ferreiros locais, ou aquecimento de casas senhoriais das cidades de Lamego e do Porto.
E antes que seja tarde, antes que eu esteja morto, de cabeça levantada, resumo, o que não deixei no livro “PEGADAS MINHAS”:
Na juventude, com enxada e enxadão em punho, um desejo encasquetado na cabeça, abri uma cova no chão, derrubei urgueiras gandarinhas, arranquei as torgas, fiz carvão e, de calos na mão, com o dinheiro dele, comprei uma caneta de tinta permanente. E, aos 84 anos de idade, tenho na pituitária o cheiro do carvão arrancado na tapada dos meus pais, sita no Outeiro do Pisão, ao lado do Rio Mau. E não esqueci, também, como dou aqui prova escrita, toda essa sorte, toda essa dita, todos os trabalhos que me fizeram suar, mas também me deram o prazer de ouvir tilintar na minha algibeira o primeiro dinheiro “cunhado” em Cujó, na tenda dos Ramalhos, com o qual comprei uma caneta, primeiro passo de longa e distante meta.

Sou professor aposentado. Assumido lenhador na florestas das letras, com assento no podium “NOTABLE PEOPLE” disponível no GOOGLE ( https://tjukanovt.github.io/notable-people) para respeito e consideração dos estudiosos e despeito dos imbecis, sem agulha nem carris, enrroscados nos seus covis, eis-me de podão em punho metido mato dentro a usar as LETRAS para falar de carvão, da serra do Montemuro e suas gentes. Não sei se é uma lição. Se é, pergunto-me a quem presta ela no tempo em que a mocidade caleja os polegares das mãos a rolar o tapete solto das suas ferramentas digitais de bolso? Mas que finta! Eu, na minha mocidade, preocupado em arranjar uma caneta. E eles, com a mesma idade, a escrevem sem caneta, sem papel, nem tinta. Uns felizardos. Viva a ciência. Viva o progresso. Nós e a natureza. Nós e as coisas. Nós e os tempos! Nós e as pessoas. Nós e a HISTÓRIA.
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