CAPÍTULO II
Falei de Celtas e de Romanos. E, por isso, forçoso é que interponha aqui, antes de falar nos tempos medievais, os textos que escrevi recentemente sobre o TEIXO, isto é, sobre a ESCULTURA que foi construída com pedaços daquela árvore que, sendo uma das ÁRVORES SAGRADAS DOS CELTAS, virou arte e ALTAR DE SANTA BÁRBARA, em Lamelas de Lá, por ser sabido e consabido que aqueles restos do volumoso TEIXO livravam a povoação de «raios e coriscos». É que essa árvore, tão «amada quanto odiada» testemunhou, no tribunal do tempo, as crenças e as lutas tribais peninsulares desde pré-celtas, cetas, celtiberos, lusitanos, romanos, visigódos, árabes e nativos que nunca deixaram de o ser, mesmo que entre eles houvesse os «moçarabes», no tempo da ocupação moura, iniciada em 711 e finalizada em 1492 após a conquista de Granada. Foi assim:
1 - O TEIXO - O ÚLTIMO DOS MOICANOS
Em 2001 realizou-se em Castro Daire o “FORUM MONTEMURO 2001” no qual participei palestrando sobre o Mosteiro da Ermida, a par de outros palestrantes que discorreram sobre os temas naturais e históricos agendados.
Um dos palestrantes foi o PROFESSOR da UNIVERSIDADE DE COIMBRA, DOUTOR JORGE PAIVA, botânico de renome, que falou sobre a abundante e diversificada flora ibérica, quer nativa, quer invasora. As duas primeiras fotografias que se seguem, dessa árvore, foram extraídas do GOOGLE para ilustrarem esta crónica.
Sublinhou a existência do CASTANHEIRO e do CARVALHO ALVARINHO e a desbaste que estas árvores sofreram para fazerem barcos, aquando, no século XVI, demos “novos mundos ao mundo” com a empresa dos DESCOBRIMENTOS.
Falou na longevidade destas árvores e disse que, correndo o país, conhecia algumas delas já seculares, existentes no nosso território. E, na sua exposição, não esqueceu uma outra - o TEIXO - que, tendo também aqui o seu habitat durante séculos, sucumbiu à força do machado dos povos, por virtude das suas folhas e bagas serem abortivas e venenosas e, consequentemente, comidas pelos animais, os levarem à morte, desfecho que se revelava contrário os interesses dos camponeses que tinham neles uma forma de subsistência, de deslocação e força de tração na lavoura e transportes.
Sabido isto, direi que os meus caminhos de investigação da HISTÓRIA LOCAL me levaram às medievais terras de Gandivao (atual Póvoa do Montemuro), primeiro na leitura das INQUIRIÇÕES DE D. AFONSO III (1258) e depois, através de um testamento feito em 1853, por LUISA DUARTE TRULHA, no qual ela deixava ao sobrinho «metade do Porto do Teixo e do Gandivao» e, no mesmo sítio, deixava “a moita por cima do lameiro» que «é o que parte com elle».
Depois, ainda, conduzido pelo senhor Alcino Aveleira. Ele levou-me até ao
barranco do Gandivao para localizar o PORTO DO TEIXO. E ali, no sítio onde melhor de transpunha de uma margem para outra a linha de água que corria para o rio TEIXEIRA que deslizava dois passos mais abaixo, vindo do Chão dos Frades, ele me informou que tal designação se devia ao facto de ter existido ali um TEIXO de grande porte. E associou a existência da PEDRA TEIXEIRA, no alto do Montemuro, em torno da qual, em tempos remotos, se reuniam os autarcas das freguesias confinantes para tratarem de assuntos de interesse comum, ao PORTO DO TEIXO, ali mesmo, e, mais abaixo o RIO TEIXEIRA, a caminho do Paiva. Três nomes com a mesma raiz. Isto sem ser geógrafo ou linguista, sem ter queimado as pestanas a ler livros na Universidade de Coimbra, mas tão só a romper tamancos e botas por esta serra fora a conhecer penedos, árvores, arbustos, montes, regatos e rios. Orografia, geografia, fauna e flora.
Ora, sabendo eu isto tudo e sabendo também que o TEIXO era uma das ÁRVORES SAGRADAS dos Celtas, a mesma árvore que SINISTRA E ASSASINA se tornou para os povos peninsulares posteriores, devido à morte dos gados, não deixei de ter sob a minha mira o seu nome, procurando indícios e resquícios que dela aflorassem, em qualquer tempo e lugar, que mais não fosse na MEMÓRIA dos povos, pois tenho por axioma que a MEMÓRIA sobrevive à MATÉRIA.
E felizmente aconteceu que, recentemente, o nome TEIXO voltou a chegar até mim pelas razões que já expus em dois vídeos alojados no meu canal do YOUTUBE (cf. links em rodapé) mas que resolvi desenvolver em texto escrito, aqui mesmo, mais demoradamente, devidamente ilustrado.
Com efeito, neste meu afã de adquirir e difundir o conhecimento ligado às nossas terras e nossas gentes, deparei, em LAMELAS DE LÁ, com um tronco de árvore seco, tornado ESCULTURA pública, onde, numa das saliências, assentava a IMAGEM DE SANTA BÁRBARA e ao lado, um pouco mais abaixo, recortado em madeira, uma espécie de livro aberto com um texto escrito. Nada menos do que uma versão das orações que os povos sabem e dirigem em prece a Santa Bárbara, em tempo de trovoada.
Procurei esclarecer-me sobre a razão de tudo isso e fiquei a saber tratar-se dos restos do tronco de um velho TEIXO que ali existia, ao qual era atribuída a capacidade de “atrair as faíscas” dos relâmpagos que rasgam o céu em direção à terra. E, assim sendo “desde tempos antigos”, havendo necessidade de aumentar o tanque de lavar a roupa, a árvore que já estava seca, que tinha servido, tempos infindos, de estendal de roupa posta a corar, depois de lavada, foi arrancada e, prestes a desaparecer dali, levada pelas carrinhas da Câmara, alguns populares, conhecedores da sua história, evitaram que isso acontecesse.
Aquele tronco “atraía as faíscas” e tinha um grande valor e significado para a aldeia, pelo que nela devia permanecer. E se arrancado foi do sítio natural, perto dele devia ficar. E ficou. O tronco foi limpo, tratado, vernizado e, à distância de três ou quatro metros do sítio original, autêntico «para-raios» que era, virou ESCULTURA-ALTAR com a imagem de SANTA BÁRBARA “advogada das trovoadas”, no dizer dos meus dois entrevistados, já com idade bastante para se pôr em dúvida o seu saber, crenças e vivências.
Ora, a história ensina-nos que grande parte dos templos, lugares sagrados e festejos PAGÃOS viraram CRISTÃOS com o decorrer dos tempos. Não faltam exemplos por este Portugal fora, sendo um deles a COSTUMEIRA POPULAR de se levantar o PINHEIRO E OS MASTROS DE S. JOÃO, que outra coisa não é senão o prolongamento do culto disfarçado ao Deus PRIAPO, da FERTILIDADE, prestado na antiga Grécia e Roma, no solstício do verão e chegado à P. Ibérica com a ROMANIZAÇÃO.
E nós temos aqui o exemplo claro de que, à margem da instituição igreja, uma ÁRVORE SAGRADA PAGÃ, por iniciativa e vontade de populares da aldeia, virou público ALTAR CRISTÃO. A “ARVORE SAGRADA” dos Celtas, a “ARVORE SINISTRA E ASSASSINA” para os povos posteriores, porque tinha a virtude de «atrair as faíscas» virou ALTAR DE SANTA BÁRBARA”.
E assim vai a HISTÓRIA. E por assim ir, conhecida a saga de uma árvore desaparecida das redondezas serranas, conhecida a sua relação com os animais, com os seres humanos nos tempos idos e as suas crenças religiosas antigas e atuais, enfim, um tronco de TEIXO é hoje peça arqueológica autêntica, genuina e exclusiva ligada do nosso PATRIMÓNIO NATURAL e CULTURAL. Por isso me dei ao cuidado de fazer os registos que deixo escritos e em vídeo, nomeadamente os COMENTÁRIOS pertinentes que aditei aos dois vídeos.
Assim:
«Tratando-se de uma árvore, cuja espécie desapareceu das redondezas, esta escultura, este pedaço de TEIXO, devia ser preservado naquele sítio mas fora de um tanque cheio ou vazio de água. Fica a sugestão para o Presidente da Junta e/ou outras entidades LOCAIS interessadas em salvaguardar o nosso PATRIMÓNIO NATURAL e HISTÓRICO. E para atrativos turísticos e culturais, Lamelas não precisa inventar “lendas” sobre penedos, basta conhecer, divulgar e esclarecer o PATRIMÓNIO existente ou desaparecido».
2 - “O ÚLTIMO DOS MOICANOS”
Após publicação dos vídeos e do texto que fiz sobre a OSSADA que restou de um TEIXO que existiu em LAMELAS DE LÁ, essa árvore mítica e sagrada dos Celtas, tão «amada quanto odiada» que virou altar cristão de Santa Bárbara, a grande defensora contra as trovoadas, recebi, via MESSENGER, algumas fotografias vindas de “BARRÔ LAMELAS”(identificação facebookiana) sem qualquer nota explicativa.
Face à gentileza e cedência de tão precioso material fotográfico, ignorando eu a verdadeira identidade do remetente, apressei-me a agradecer-lhe pela mesma via, tal qual se mostra nos “prints” ao lado, cujo texto reproduzo para melhor leitura:
“Agradeço as fotos. Serão muito úteis para futuras referências. Agradecia nome completo para atribuir os respetivos méritos. Sou HISTORIADOR e o ofício obriga-me a ser exigente com esses pormenores. Fez um excelente registo. Mais uma vez obrigado”.
Como ele me tivesse respondido ser “ABÍLIO CARDOSO”, respondi, de pronto:
“Também é ABÍLIO? Coisa interessante, um ABÍLIO restaura, outro ABÍLIO faz a história. Se não vir inconveniente podemos ter uma conversa filmada junto da ESCULTURA e você explicar o que o levou a fazer a ESCULTURA. O senhor Jacinto já disse muito, mas há sempre algo mais que fica por dizer. E tratando-se da OSSADA de uma árvore EXTINTA, ainda por cima SAGRADA PARA OS CELTAS, não se perderia nada acrescentar o mais que souber. É só dizer-me e eu vou lá. Para isso tenho mota. Abraço.”
Esperei, mas este conterrâneo, pronto e prestável a ceder-me as fotos, não se dispôs a acrescentar algo mais sobre a ESCULTURA da qual diz ter sido o responsável pela junção dos TRÊS GALHOS soltos que restavam do velho TEIXO que pela comunidade local considerado era uma espécie de para-raios, por “atrair as faíscas”, no dizer do senhor Jacinto e Dona Maria Augusta, reportando-se à SANTA BÁRBARA, ambos naturais da terra, com idade bastante para não serem levadas a sério.
Assim, sem informações complementares que viessem enriquecer o “dito, feito e visto” no texto e vídeos publicados, sempre empenhado nas respostas que nos dão os documentos, as pessoas e as coisas quando interpeladas são, sempre disposto a ouvir o que a nós humanos, nos dizem de humano as coisas inertes ou mortas, todavia recheadas de informação oculta, quero aqui deixar, na íntegra, um texto de MIGUEL TORGA, escrito em novembro de 1947, no qual se refere a um TEIXO, ao seu valor simbólico e prestes a desaparecer da face da terra.
Vale a pena trazê-lo aos tempos que correm e associar as palavras que ele dedicou ao ABADE DE BAÇAL e o título «O ÚLTIMO DOS MOICANOS» que eu dei ao texto e ao vídeo, advertindo e almejando que tal designação não viesse aplicar-se a mim próprio. Assim:
«Coimbra, 14 de Novembro de 1947- Morreu ontem o abade de Baçal, um homem pré-histórico e sábio. Pré-histórico, porque se manteve sempre na primitiva decência de uma humanidade fundamental; sábio, porque sabia do seu ofício, que era a arqueologia. Patego e sem génio, trouxe para a reflexão dos problemas da cultura um bom senso campónio, terroso, que tem a utilidade doméstica do Borda d’Água. E a sua obra é uma espécie de «governo do ano» do distrito de Bragança. As luas, quando se rega e semeia, a época das colheitas, e as rezas com que é preciso ajudar a semente. Parece pouco, mas é assim que se começa.
Como bípede e transmontano, gostava de lhe ter dito duas palavras sobre a sepultura. Nada de particular. Testemunhar-lhe apenas o meu respeito, não pela obra, que é rudimentar, como digo, nem pela vida, que foi de primário, como se sabe. Gostava de o saudar pela raridade da sua casta. Andei há tempos várias léguas para ver um teixo, que é uma árvore que os botânicos dizem que vai acabar». (in «Diário» vols. III e IV, pp 151-152)
Fica claro que Miguel Torga teve de andar léguas para «ver um teixo», a árvore que os botânicos «dizem que vai acabar». O escritor/poeta não disse onde se situava tal árvore e essa omissão permite-nos especular que tanto podia ser aquela da qual vemos agora apenas a OSSADA, em Lamelas de Lá, como outra qualquer em sítio esconso e longe da sua morada. E releva a «raridade da sua casta» por comparação com a personalidade e o caracter do Abade de Baçal: «Pré-histórico porque se manteve sempre na primitiva decência de uma humanidade fundamental; sábio, porque sabia do seu ofício, que era a arqueologia (…)»
Ao tempo que Miguel Torga escreveu isto, tempo em se viu nestas andanças, reportando-se a estes dois seres dignos de respeito pela «raridade da sua casta» não teve presente a narrativa de James Fenimore Cooper, no seu livro «The Last The Mohicans», editado em 1826. E também estávamos longe de chegar às salas de cinema o filme com título homónimo, datado de 1992. Se tal tivesse acontecido, duvido que ao escritor/poeta não lhe ocorresse aplicar ao teixo e ao abade de Baçal, pela «raridade da sua casta».
E, nos tempos que correm, sendo cada vez mais evidente a perda de caráter e identidade nossa, nas obras que por cá se vão fazendo, nunca é demais lembrar esse tipo de antepassados que tivemos. E lembro o que diziam os antigos: «aquilo é que eram homens!».