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sábado, 10 março 2018 20:50

CLÁSSICOS DO OESTE (1)

Escrito por 

...CORRER SEM DESTINO EM BUSCA DAS ORIGENS SELVAGENS ESFUMADAS NO TEMPO E NO ESPAÇO...  

Foi um fartote. De 3 a 11 de março, o canal FOX MOVIES tem estado a exibir uma série de clássicos do velho oeste que me prenderam ao écran horas consecutivas.

De posse da informação, não fosse escapar-me algum deles, procedi à gravação dos já exibidos na BOX MEO, onde estão prontos para rever. A bem dizer, sedento que estava de retornar à mocidade, mandei rifar programas e noticiários e, refastelado no sofá, voltei  aos tempos em que fui proteccionista de cinema, em TETE, lá no cu do mundo, aos tempos em que, apesar de empregado numa profissão transitória, o futuro era para mim uma incógnita, uma grande e temerária aventura. 

2E aventura destemida, de cawboys em grupo ou solitários, corajosos ou cheios  de medo, espelhando as verdadeiras feições humanas, foi o que eu vi a par da ganância, da inveja, da riqueza, da miséria e pobreza. O ensejo de fixação à terra, um palmo de terra que seja,  o cansaço de ser andarilho, salteador de bancos e o desejo de com o produto do roubo adquirir um qualquer rancho e nele, bandoleiro que foi, se transformar num homem novo laborioso e honrado. O cansaço de jogatinas de casino e repouso numa cadeira de balouço, sem necessidade de sacar o revólver e disparar para não ser morto. As manadas de cavalos e de vacas a atravessarem quilómetros para serem abatidas ou a reproduzirem a espécie num qualquer rancho de vaqueiro já  feito a a fazer. O obstáculo dos rios. Os saloons a tresandarem a álcool, sexo e tiroteio cerrado por dá cá aquela palha, ou ajuste de contas de negócios  anteriores mal resolvidos. 

1Sonhos de velhos, novos, homens, mulheres e crianças a deslocam-se por vales, planícies e montanhas, em carros, carretas ou montados em selas cilhadas em fogosos cavalos. Os mustangs e os appaloosas de militares ou de cowboys espelham a mestiçagem de gente e bichos. Zaragata e murros em barda, pois americano que se preza, esmurra, espanca e reza.  É a América a nascer. Os americanos a conquistarem as terras e os índios a perdê-las. O chapéu alto de janota, jogador de cartas, aba levantada, distingue-se claramente do chapéu de palha do mexicano de aba caída sobre orelhas e rosto. A astúcia, a verdade, a mentira e a ingenuidade, a boa e a má fé deslizam rua abaixo e rua acima ao gosto de cada um. Por todo o lado impera a lei do mais astuto, do pai e do filho, do  mais esperto e mais rápido no gatilho. E mesmo em cidades que se reclamam de "LEI E ORDEM", a vida e a morte estão no fio da navalha, nas mãos do banqueiro ganancioso e do xerife corrupto, alguns deles ex-membros de gangue salteador de comboios e caravanas. Não faltam cadeias e forcas. Pianos e prostitutas. Igrejas e cangalheiros. Coragem e bazófia. Gente de paz e bandoleiros.  Estábulos onde o macho cobre a fêmea e o homem faz sexo com a mulher em concluio amoroso ou encontro fortuíto. uma relação estreita com a natureza. Ontem, hoje e sempre, no oeste, no este, em todo o lado. Aquela criança a dizer ingenuamente que o vaqueiro cheira a bode. A senhora a perguntar a outro vaqueiro quantas vezes toma banho. Resposta pronta: «sei lá, três ou quatro». Por mês? «Não, por ano». E enumera as vezes que necessita de fazê-lo. As máquinas a vapor, paradas nas estações resfolgam como que ganhando fôlego para deslizarem nos carris, levando gente, armas e barris. Água corre nos rios e nas fontes. Nos bares e salooms corre, para todos,  wísque a rodos.

A nossa vista deslumbra-se com as paisagens que se perdem à distância entre barrancos, planícies e montanhas por trás das quais, naquela vastidão de horizonte,  se descortina sempre a pena espetada de um índio, sentinela de tribo, atento ao inimigo que chega armado até aos dentes. A cor alaranjada do céu ao fim de tarde contrasta com as nuvens escuras que anunciam borrasca e obrigam a paragem forçada as caravanas e os sonhos que nelas rodam ou cavalgam. Encontros e recontros de gente que está e de gente que chega. Uma só fita humana em muitas muitas postas na tela, com banda sonora instrumental, assobiada ou cantada, senão com permanente estampido do tiroteio e do relincho de equinos sem cavaleiro. Estamos no faroeste.  

4Não vou referir nomes, mas pelo écran da minha televisão desfilaram os artistas e as artistas que dispensam apresentação, todos cuja arte eu projectei na tela de cinema há muitos anos. Eram jovens quando eu era jovem. Lúcido e informado, ciente estive de que, por algumas horas, convivi com mortos, pois mortos são a maioria deles e delas. Vivos só nas telas. 

E se não refiro nomes de actores e realizadores, também não refiro os títulos. Mas abro una excepção para "O VALE DO FUGITIVO". Sim, tinha de ser. Não porque o tema seja inédito, mas por tudo aquilo que ele significa para todo o ser humano, se humano eu sou e como ser humano penso e sinto. É isso. Aquele mestiço, conhecedor do seu passado e do passado das suas gentes metidas em reservas, impedido de amar quem amava, decidiu fugir com a amada, disposto ao desse e viesse.  E o que veio e deu foi a morte dela e dele, depois de cansativa corrida por vales e montes, a fugirem da civilização chegada. Ela, cansada de fugir, matou-se. Ele sozinho, em busca de liberdade,  correu, correu, saltou, saltou quem nem gato selvagem. Subiu, subiu que nem puma pendurada nos cabeços escalpelizados dos montes e, esgotada a última bala, depois de ter atingido os cavalos e não os cavaleiros perseguidores,  fingiu deixar-se apanhar de surpresa, de costas,  pelo persistente e jovem xerife que lhe ordenou que se virasse. E, apesar dos índios acreditarem que ele "era como uma nuvem" e que não seria apanhado,  sucumbiu  ao tiro certeiro do perseguidor. Morto o perseguido, o xerife, com as mãos manchadas de sangue, à falta de água por perto, lava-as com areia,  à frente da antropóloga, a doutora que, na reserva, geria as relações entre americanos e índios. E geria também, mais mal do que bem, as relações íntimas que com ele tinha, mais por submissão ao poder da estrela do que movida por afetos ou apetites carnais, Era política.

Mutatis mutandis. Fora as armas e as balas, não têm conta as vezes que eu, tal como aquele mestiço, sinto desejos de fugir da civilização e correr sem destino até desaparecer no pico de qualquer monte, assim a modos  que aquelas fumarolas que, em forma de nuvens, em certas estações do ano, desse monte se levantam e se evaporam no ar, sem deixarem rasto. Melhor ainda, correr, correr sem destino em busca das minhas origens selvagens esfumadas no tempo e no espaço,

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.