10.3 - Já vimos que, face a tal atitude e ameaça, fui obrigado a contactar um advogado e a intentar uma acção no Tribunal Judicial de Castro Daire, reivindicando o reconhecimento do direito adquirido de «passagem de carro, tractor, e a pé» pelo espaço referido, citando, a propósito, o aforismo popular «quem deve caminhos e regos não se atravanca neles». Sou muito atreito aos adágios populares e à sabedoria que eles transportam.
10.4 - Na acção posta em tribunal, ainda que, a partir da escritura de compra se falasse abundantemente dos bens adquiridos e direitos conexos, nomeadamente do uso que os AA. faziam das águas da Levada de Fareja pelo rego que atravessa a rua e a eira no sentido norte-sul, prática amplamente justificada pelas testemunhas, falando sempre de «rego» e não «aqueduto» (terminologia que aqui sublinho por razões que abordarei mais adiante) e bem assim com fotografias (ver fotos abaixo) foi matéria não incluída no pedido inicial, já que a oposição feita pelos RR, melhor dito, pelo R. marido, nos termos acima expressos, se reportou exclusivamente à «passagem de pé, animais e carro, incluindo tractor, em favor do prédio dos AA».
Não havia, portanto, motivo e razões para meter a matéria do «rego» no pedido e não foi metida. Ademais, como bem mostra a data das duas fotografias impressas automaticamente pela câmara (12-08-2010) evidente se torna que os AA continuaram a usar o caminho e o rego, depois do réu marido se ter oposto à passagem do tractor para retirar o feno, que foi no mês de Maio, do mesmo ano.
Estas fotografias foram anexas aos autos e foram analisadas em audiência a pedido do meu mandatário. E face a tal pedido, a Meritíssima Juíza, solicitou as fotos originais, por não serem legíveis as fotocópias apensas ao processo. Cedidas estas, interpelada a testemunha, Leonel Ferreira, esta não só explicou detalhadamente as entradas e saídas de caminhos e regos para o logradouro e quintal através da eira, «90% era por aqui», assim disse ele, mas também, identificou a pessoa que, junto ao rego e entre portões, se encontrava. Assim:
- Juíza: quem é este senhor que está aqui, é o senhor?
- Leonel: não, não, é o Dr. Abílio.
Tivesse a Meritíssima Juíza atentado neste pormenor da fotografia e tivesse levado em conta o depoimento da testemunha que me identificou nela e teria deixado a questão do caminho e rego fora da sua análise, tal como fora do pedido os deixaram os AA.
É que coisa bem distinta é o direito de servidão, adstrito à moradia, logradouro e quintal adquiridos ser lembrado sobejamente pela testemunha e referido na p.i. como era curial ser feito, e outra coisa era levá-lo a juízo, sem que tal tivesse sido obstruído pelos RR. Não foi. E a data impressa automaticamente na foto, assim o mostra.
Mas, para maior visibilidade comparativa e entendimento da leitura subsequente que merece a sentença proferida pela Meritíssima Juíza, vejamos a grelha seguinte. Na coluna da esquerda temos o texto sumário do pedido dos AA que remata a «p.i» estruturada e redigida pelo meu mandatário. Na segunda, temos a «decisão» da Meritíssima Juíza do Circulo Judicial de Lamego, que remata a sua sentença:
in PETIÇÃO INICIAL DOS AA. |
in DECISÃO FINAL DA SENTENÇA |
«Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e em consequência:
c) Devem ainda os RR. ser condenados a não mais obstruir ou por qualquer meio impedir ou dificultar os referidos direitos de passagem em favor do prédio dos AA. d) Assim como devem ainda os RR. ser condenados na sanção pecuniária compulsória de 500,00 € por cada vez que obstruam, impeçam ou dificultem o exercício do direito de passagem que vier a ser reconhecido em favor do prédio dos AA, seja de pé, carro, ou com animais».
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«Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e julga-se a reconvenção improcedente, por não provada e, em consequência decide-se: a)Condenar os RR a reconhecer o direito de propriedade dos AA sobre o prédio urbano e quintal anexo inscrito na matriz predial da freguesia de Castro Daire., sob o artigo 3366 e descrito na CRP de Castro Daire sob o nº 101/19850912 b)Condenar os RR. a reconhecer que sobre a eira que integra o prédio, sito no lugar de Fareja, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 13814: da freguesia de Castro Daire, a confrontar com o caminho, sul e poente com Leonel Ferreira Duarte e outros e nascente com Nazaré Cardoso, a favor do quintal do prédio dos AA., identificado na al. a) do dispositivo uma servidão de passagem, a pé, de carro, incluindo tractor e animais, através de uma faixa de terreno com cerca de 21m de comprimento por cerca de 2,40m de largura, através da eira referida, no sentido sul-norte, a poente do canastro aí existente, desde a abertura com 2,40 de largura no muro sito na estrema norte do prédio dos AA., onde existe um portão feito em rede com aro em tubo de ferro até à abertura no muro da vedação com o caminho público a norte da eira, com a largura de 2,40, onde existe um portão em chapa de ferro, sem chave, servidão essa a exercer diariamente e a qualquer hora. c)Condenar, ainda os RR. a não obstruir ou por qualquer meio impedir ou não dificultar a passagem em favor do prédio dos AA., sobre a faixa de terreno mencionada em b) d)Absolver os RR do demais pedido pelos AA. e)Absolver os AA/reconvindos dos pedidos reconvencionais formulados pelos RR/reconvintes Custas da acção pelos AA. e RR, na proporção, respectivamente de 10% e de 90% e custas das reconvenções pelos RR/reconvintes (cf. artº nos 1 e 2 do C.P.C.), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido aos últimos. Registe e notifique Lamego, 08/05/2013 (pp.37/38)» |
10.5 - Lado a lado o «pedido» dos AA. e a «decisão» da Meritíssima Juíza. Na primeira coluna os autores pedem que a «presente acção deve ser julgada procedente por provada» e, na segunda, a juíza entende que a acção só foi «parcialmente provada», sem descriminar que parte dela foi pedida pelos AA e da qual eles não fizeram prova.
A fim de evitar equívocos e subentendidos (coisa que nenhuma sentença, no acto decisório, devia albergar) olhemos o «PEDIDO» dos AA, alínea por alínea, linha por linha, vírgula por vírgula, tentando descobrir ali qual foi a matéria que foi «pedida» e qual foi a matéria que não foi «provada».
Dissemos lá para os princípios deste trabalho que voltaríamos à sentença mais tarde, para vermos como a Meritíssima Juíza tinha discorrido, opinado e sentenciado. É pois o momento de o fazermos, após este ligeiro, mas necessário, enquadramento.
E é indispensável a pergunta: o leitor viu em alguma alínea desse «pedido» o mandatário dos AA solicitar a «condenação dos RR no reconhecimento da existência de uma servidão de aqueduto sobre a eira mencionada», bem como a referência a algum aqueduto, dito «rego» na linguagem local? Não. Não viu. Pelo que não deixou de ser surpreendente que a Meritíssima Juíza, por ARBÍTRIO seu, tenha trazido à colação matéria não solicitada (rego=aqueduto) puxando-a para a sua decisão, só porque ela constava da p.i. a título descritivo da compra feita: moradia, logradouro, quintal e direitos inerentes, conforme a respectiva escritura que foi anexa. Assim:

10.6 - E vai daí, apesar da Meritíssima Juíza ter reconhecido, ela própria, que a questão não tinha sido «formulada expressamente» pelos AA, discorreu, em «matéria de direito» sobre a «servidão de águas», socorrendo-se de vários artigos do Código Civil, para explanar as diferentes modalidades neles contempladas, a saber:
«De aqueduto (artigo 1561º e 1562º), de escoamento (artigo 1563º), de presa (artigo 1559º) de aproveitamento de água para uso doméstico (artigo 1557º) e de aproveitamento de águas para fins agrícolas (artigo 1558) in casu importa-nos apenas considerar a servidão de aqueduto».
(continua)