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sexta, 28 março 2025 13:12

TETE-QUELIMANE: FISCAL DE CAÇA

Escrito por 

A ESSÊNCIA DO SER HUMANO

No dia 17 de março de 2015 publiquei no meu mural do Facebook o texto que, vindo às MEMÓRIAS recentemente, só hoje migra para este meu site, jpor força dos «comentários» que recentemente sobre  recaíram: (Cf. mural) Assim:

 

17 de março de 2015

TETE-QUELIMANE

FISCAL DE CAÇA

Ele andaria pelos seus 60 anos de idade. Eu nos meus 24. Creio que estava ligado aos Serviços da Agricultura e desempenhava as funções de Fiscal de Caça. Não era pessoa das minhas relações. Com a sua idade, lá tinha a sua roda de amigos e eu a minha, ainda que, numa cidade tão pequena, como era Tete, toda a gente se conhecesse. 

Eu era um jovem chegado ali, tal qual todos os jovens que buscam e acarinham o primeiro emprego, lá onde quer que seja, mesmo que em cascos-de-rolha.  No presente caso, na cidade mais quente de Moçambique.

Os mais novos tratavam-no por "Senhor Parreira" e os mais próximos de idade e confiança, somente por "Parreira". 

Eu saí de Tete para Milanje e de Milanje para Lourenço Marques com passagem por Quelimane, onde tomei o avião até ao destino. E foi no átrio do aeroporto que, inesperadamente, nos cruzamos. Já não nos víamos há uns tempos e eu, verificando que ele não estava de viagem, aproximei-me perguntei-lhe:

- Que faz por aqui, senhor Parreira?

O homem virou-se, reconheceu-me de Tete e deixou rolar as lágrimas pelas faces abaixo.

- Deixe lá o "senhor Parreira", diga somente "Parreira", pois foi assim que durante anos me trataram em Tete. Só lá. Você é a pessoa que disse o meu nome desde que me transferiram para aqui. Não conheço cá ninguém e ninguém me conhece cá. Venho para aqui,  na esperança de encontrar alguém que conheça. Os serviços acusaram-me de "fechar os olhos" a alguns transgressores na caça e transferiram-me, melhor, degredaram-me. Estou num degredo, sem família, nem conhecidos. Você é jovem, pode não entender por que choro, mas quando chegar à minha idade, ciente de que sempre cumpriu os seus deveres de funcionário e, sem mais quê, me puseram uma guia de marcha nas mãos e me arrancam da terra onde deixei anos de vida, entenderá. Aquilo foi para colocarem lá algum afilhado. Eu nunca beneficiei ninguém.

Fiquei sem palavras. Não tinha idade e experiência de vida para lhe dar o ânimo que lhe faltava e não adiantava nada dizer-lhe que também eu saí de Tete transferido para Milanje em rutura com as hierarquias. Não tive palavras para consolar aquele homem que tinha idade para ser meu pai, mas tinha idade e determinação suficiente para dar com os pés na minha primeira profissão, procurar outra e não me ver, mais tarde, numa situação idêntica à sua. 

Ja ultrapassei a sua idade. Já passaram muitos anos. Mas não me apagou da memória a imagem daquele homem a chorar e a implorar-me para o chamar pelo seu nome:

- "Diga somente Parreira".

COMENTÁRIOS:

1- IRENEU MACHADO:

«Histórias de vida que nos fazem pensar nas injustiças que a vida nos mostram».

2 - HERMENEGILDO BORGES:

«Memórias edificantes para quem o lê e o definem como Ser Humano! Bem haja pela partilha. Abraço»



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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.