SEM TÍTULO
Nesta grande cidade de velho e novo casario que, pelo rio, viu partir Portugal inteiro para as Índias, Áfricas e Brasis, como se diz, para outros mundos... cidade capital de muitas igrejas, capelas, cúpulas, torreões e mais o castelo, coração da antiga cidadela, eu, solitário e sonâmbulo aldeão, não encontro nenhum encanto nos cantos e recantos no chão dela. Por avenidas, quelhos, ruas e ruelas me passeio, por elas passo o tempo a deambular e nelas vejo, de braço dado, ranho e asseio. E, nesta minha deambulação, todos os dias leio as repetidas páginas do livro que, neste meu mutismo, pelas avenidas, ruas e ruelas folheio.
Mudo, presencio isto tudo, nas avenidas, ruas e ruelas, as mesmas que, tal como os ribeiros e rios que marcam encontro num ponto, têm a foz no Rossio. Todos os dias aqui me apeio do metro, do elétrico, do autocarro. E todos os dias daqui parto, a pé, indiferente à vida mexida que daqui brota em todas as direções, tal qual é: um poliedro de mil faces, mil interesses, mil combinações de cores, sabores e dissabores. O mundo inteiro. Ando, cirando e não ligo aos encontrões das gentes, aos pregões, às chalaças; não ligo às estátuas, aos bustos de poetas, escritores e políticos astutos postos sobre pedestais, nas praças; não ligo aos pombos que, no seu arrulho de urbanidade, ostentam o orgulho de nelas pousarem e deixarem as assinaturas fecais, selo público e raso desses tabeliões alados, avisados de que a vaidade humana mais não vale do que aquela massa viscosa-esverdeada que põem a escorrer pelos poleiros de bronze ou de mármore desta floresta urbana; não ligo às barracas, às vivendas de luxo com jardins, iluminação e repuxos.
Não. Só ando e cirando. Outros são os cuidados com que lido. Ando, cirando e, a passos pesarosos, meço o trajeto, mil trajetos, que me levam ao Hospital dos Capuchos. Lá, é o fim da jornada. Nada faz sentido. Os grandes olhos luminosos que nunca faltaram com a luz dos afetos aos filhos e a mim estão ali e, ora se-mi-cer-ra-dos, ora muito A B E R T O S, silenciosos, dizem-me tudo, dizem-me nada e, na sua habitual candura, totalmente alheios ao que se passa por efeitos da morfina (lá no fundo, que imagens guardarão do mundo na sua retina?) já luz a luz baça do fim, a luz baça do nada, a luz baça da noite escura, da noi...te es-cu-ra...noi-te ...es-cu-ra............................cerrada, da noite eterna, da escuridão só rasgada, só rompida pelo feixe fluorescente da mente, a que, (que mente o desmente?), é imanente à MEMÓRIA a glória da luz, da ressurreição e da vida.
NOTA: Texto escrito e publicado em 1997, no meu velho site «trilhos serranos» e no jornal «Notícias de Castro Daire», quando a minha esposa estava no HOSPITAL DOS CAPUCHOS em Lisboa, aguardando a hora da MORTE com cancro. Tinha 49 anos de idade.