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sábado, 24 fevereiro 2024 13:06

UM PROVINCIANO EM LISBOA - 1996/97

Escrito por 

SEM TÍTULO

Nesta grande cidade de velho e novo casario que, pelo rio, viu partir Portugal inteiro para as Índias, Áfricas e Brasis, como se diz, para outros mundos... cidade capital de muitas igrejas, capelas, cúpulas, torreões e mais o castelo, coração da antiga cidadela,  eu, solitário e sonâmbulo aldeão, não encontro nenhum encanto nos cantos e recantos no chão dela. Por avenidas, quelhos, ruas e ruelas me passeio, por elas passo o tempo a deambular e nelas vejo, de braço dado, ranho e asseio. E, nesta minha deambulação, todos os dias leio as repetidas páginas do livro que, neste meu mutismo, pelas avenidas, ruas e ruelas folheio.

CamõesD.JoséMudo, presencio isto tudo, nas avenidas, ruas e ruelas, as mesmas que, tal como os ribeiros e rios que marcam encontro num ponto, têm a foz no Rossio. Todos os dias aqui me apeio do metro, do elétrico, do autocarro. E todos os dias daqui parto, a pé, indiferente à vida mexida que daqui brota em todas as direções, tal qual é: um poliedro de mil faces, mil interesses, mil combinações de cores, sabores e dissabores. O mundo inteiro. Ando, cirando e não ligo aos encontrões das gentes, aos pregões, às chalaças; não ligo às estátuas, aos bustos de poetas, escritores e políticos astutos postos sobre pedestais, nas praças; não ligo aos pombos que, no seu arrulho de urbanidade, ostentam o orgulho de nelas pousarem e deixarem as assinaturas fecais, selo público e raso desses tabeliões alados, avisados de que a vaidade humana mais não vale do que aquela massa viscosa-esverdeada que põem a escorrer pelos poleiros de bronze ou de mármore desta floresta urbana; não ligo às barracas, às vivendas de luxo com jardins, iluminação e repuxos.

LisboaNão. Só ando e cirando. Outros são os cuidados com que lido. Ando, cirando e, a passos pesarosos, meço o trajeto, mil trajetos, que me levam ao Hospital dos Capuchos. Lá, é o fim da jornada. Nada faz sentido. Os grandes olhos luminosos que nunca faltaram com a luz dos afetos aos filhos e a mim estão ali e, ora se-mi-cer-ra-dos, ora muito A  B  E  R  T  O  S, silenciosos, dizem-me tudo, dizem-me nada e, na sua habitual candura, totalmente alheios ao que se passa por efeitos da morfina (lá no fundo, que imagens guardarão do mundo na sua retina?)  já luz a luz baça do fim, a luz baça do nada, a luz baça da noite escura, da noi...te es-cu-ra...noi-te ...es-cu-ra............................cerrada, da noite eterna, da escuridão só rasgada, só rompida pelo feixe fluorescente da mente, a que, (que mente o desmente?), é imanente à MEMÓRIA a glória da luz, da ressurreição e da vida.

NOTA: Texto escrito e publicado em 1997, no meu velho site «trilhos serranos» e no jornal «Notícias de Castro Daire», quando a minha esposa estava no HOSPITAL DOS CAPUCHOS em Lisboa, aguardando a hora da  MORTE com cancro. Tinha 49 anos de idade.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.