Imprimir esta página
quarta, 06 setembro 2017 13:35

A LIÇÃO

Escrito por 

ENSINO À DISTÂNCIA

Passou-se algum tempo sem eu ter "novas" do meu ex-professor e saudoso MESTRE DR. Francisco Cristóvão Ricardo. Foi, portanto, com grande alegria e proveito que recebi na minha caixa do correio, um "Olá, Abílio, há muito que não nos "vemos", para me penitenciar deste silêncio, envio-lhe o meu último "passatempo", em anexo, um abraço". 

E sabem qual era o anexo? Qual era o passatempo a que ele alude? Tirando as figuras que o ilustram (que fui buscar ao GOOGE) e os sublinhados a negrito que são da minha lavra, para melhor destaque, era a lição que vos deixo, aqui, tal qual, para cada um de vós ajuizar por si, se é exagero meu, tratá-lo por MESTRE. É-o e, seguramente, assim será até ao fim dos meus dias. Já tenho 78 anos de idade. Olhem só para isto!

 

IMPERADOR 

Espelho mágico, diz-me qual é imperador da poesia portuguesa mais importante do mundo que eu? O espelho sorriu devagar e, duas vezes, instado, respondeu: És tu, Fernando Pessoa, que descobriste que “o poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.

Um exemplo clássico, um ator, em palco, cai, grita de dor, é grave, vem o INEM, levam-no para o hospital, vai ser operado, diferente de um outro ator que cai, grita de dor, sai da cena,  e aparece no fim do espectáculo a agradecer os “encores”. A dor real não é arte, arte é representá-la, é fazê-la sentir, é fingi-la. 

pessoa-2Fernando Pessoa atribuiu o título de imperador da língua portuguesa ao padre António Vieira, (século XVII), pela riqueza e rigor dos seus sermões. Diante dos espelhos das montras das lojas da Chiado, que todos os dias descia, via-se, sentia-se, fingia-se, de facto, imperador da poesia portuguesa.

Ser imperador é, por definição, ter um vasto império, juntar ao nome, como o fizeram os antigos reis, Império de Portugal e dos Algarves.

Vendo numa espécie de espelho virtual, lá estavam o império do saber, o império de observar a vida e o mundo, o império de se despersonalizar, de se sentir outro, de se sentir outros e império da expressão rica, clara e rigorosa.

Lá vai ele a caminho das empresas onde é correspondente. Vem no seu fato preto, coçado, fato a pedir reforma, sempre adiada, que o salário magro mal dava para um copo de três com uma sande seca a acompanhar, fato onde baloiça o seu físico franzino, longe das atenções do mundo. Correspondente significa tradutor, por se corresponder em inglês com empresas inglesas e traduzir para português as respostas recebidas. Trabalho do agrado de Fernando, pois passara a infância na África do sul, na adolescência frequentara a universidade de Durban e, até, fora laureado pelos seus poemas em inglês.

O imperador da poesia finge tão completamente que chega a fingir que é realidade a realidade que deveras sente.

Alberto Caeiro, finge tão completamente que chega a fingir que é guardador de rebanhos o guardador de rebanhos que deveras sente, vemo-lo com num capote alentejano, um cajado nas mãos e um chapéu largo (“saúdo todos tirando-lhes o chapéu largo”), poeta das sensações, “sou um guardador de rebanhos./ o rebanho é os meus pensamentos / e os meus pensamentos são todos sensações”. Compara a sua alma a um pastor que aprecia o vento e o sol, que não pensa, porque pensar incomoda, que não tem filosofia ( “eu não tenho filosofia, tenho sentidos”), recusa a metafísica, pois “ há metafísica bastante em não pensar em nada” , e admirava Cesário verde pelo seu olhar os prédios e as ruas, pelo seu estilo prosaico, “um camponês que andava preso em liberdade pela cidade”, como ele gostaria falar dos mestres carpinteiros, do enfado dos lojistas e das “varinas que embalam nas canastras os filhos que depois naufragam  nas tormentas”. (nota: as frases entre aspas In “guardador de rebanhos”, e Sentimento dum Ocidental de Cesário Verde).

Ricardo Reis, finge tão completamente que chega a fingir que é Horácio, o Horácio que deveras sente, vemo-lo com uma toga de senador, faz-se próximo dos romanos de quem copia o mito de “carpe diem” (aproveita o dia que te é dado, que esse dia não dura sempre), cultiva na sua admiração por Roma antiga, a efemeridade da vida, usa um vocabulário alatinado, erudito (inscientes, volucres), uma sintaxe servil da sintaxe latina, como o uso do hipérbato(“as rosas amo dos jardins  de Adónis”, em vez de “amo as rosas”), referência frequente, a símbolos clássicos (Apolo, Adónis, Lídia), na crença à brevidade do dia, do tempo, da vida, “ao pouco que duramos”, como se vê   em “AS ROSAS”:

“As Rosas amo nos jardins de Adónis,

Essas vólucres amo, Lídia, rosas,

Que em o dia em que nascem,

Em esse dia morrem” (In “Odes”)

Álvaro de Campos, finge tão completamente que chega a fingir que é futurista, o futurista que deveras sente, é apaixonado de máquinas, como se prova na ODE TRIUNFAL : a beleza da máquina, “um carro de corrida é mais belo do que a estátua de Samotrácia”, o ruído das engrenagens, “r-r-r-r-r-r-r eterno”, amar, envolver-se, sentir a máquina fora e dentro de mmi, “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica /Tenho febre e escrevo./Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,/Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos”. (As frases entre aspas, in ode triunfal)

Finge, ainda, Álvaro de Campos, tão completamente que chega a fingir que é dor da saudade da infância feliz em oposição à amargura da vida de adulto, a dor que realmente sente.

“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto”.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer”,

o que eu sou hoje é terem vendido a casa… hoje já não faço anos/ duro /--- raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira” (in “aniversário” de Álvaro de Campos). 

Bernardo Soares finge tão completamente que é desassossego o desassossego que deveras sente.

O que é o Livro do Desassossego? Um romance inacabado, memórias, notas avulsas, recordações, dúvidas e Pessoa-3certezas, scuriosidades de um intelectual? Talvez, um pouco de tudo isto.

O imperador da poesia portuguesa foi um fingidor, fingir é criar, vale a pena?

Tudo vale a pena,

se a alma não é pequena.

Quem quer passar o Bojador

Tem de passar além da dor.

Deus ao perigo o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu”.

(“Mar português” in “Mensagem”)

 

 

 

 

FRANCISCO CRISTÓVÃO RICARDO

Ler 1441 vezes
Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.