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sábado, 29 outubro 2016 14:44

DE RETORNO AO SÉCULO XIX - 1

Escrito por 

A PETISCADA -1 

Nestas últimas, penúltimas e antepenúltimas crónicas cirandámos pelo último quartel do século XIX. Falei da poesia popular, de autor anónimo, métrica e rima descuidadas, temas vários por si tratados, nomeadamente o ano em que ele assentou praça (1871) ao serviço de D. Luís, como soldado. Claro que, poetando ele daquela maneira (a sua obra excluída estaria, seguramente, de entrar nos manuais escolares, ainda que escola fizesse no auditório português popular e nele perdurasse até hoje, como referi, sobretudo na zona alentejana) e ao situar-se neste ano de 1871, lembrei-me logo das «Conferências do Casino», de Antero de Quental, dos seus sonetos, textos sociais, de literatura pura, que ele cantou e a mim me encanta. Depois falei do tabelião (Antero, poeta e escritor de renome, outro escrivão anónimo de província)  que, passada uma década (certamente filho da mesma escola coimbrã) assentou arraiais nesta vilória de Castro Daire, para daqui, no desempenho do seu ofício, viajar até aos Açores, dali para Tabuaço e, depois, retornar a esta santa terrinha.

 

Antero-1 -rEDZFalei dos transportes da época, da mala-posta, dos tarecos pessoais que nenhum deles  se dispensariam de levar consigo,em viagem,  aludi às mudas de cavalos e ao vernáculo palavrosoTabelião-1880 - REDZ próprio do cocheiro herdado por alguns  taxistas atuais, seus sucessores no ofício, como bem foi "ouvisto" na televisão durante a manifestação que recentemente eles levaram a cabo, em Lisboa, contra a UBER.

Hoje volvo a esse tempo por três razões. Primeira: deixar aqui o busto de Santo Antero, exposto no Museu do Caramulo, cuja foto lhe tirei durante a visita que recentemente ali fiz na companhia da minha neta e do seu pai Nuro, meu filho. Segunda: deixar aqui alguns dos utensílios de que tanto Antero de Quental (escritor) como o tabelião António de Almeida (escrivão)  se serviriam, a saber, o material de escrita (com a pena de pato já jubilada) e uma saboneteira, essa relíquia de porcelana que a indústria do nosso tempo remeteu para as vitrinas dos museus (ou ficou abandonada numa qualquer moradia antiga) colocando no mercado o sabão e sabonete líquidos.

terceira razão é trazer a público uma nova décima saída da pena e tinteiro do anónimo poeta popular, em cujos versos nos deixou um registo daquilo que, nesse século XIX , se comia e bebia por este Portugal em fora. E o poeta não era de «má boca», não senhor! Desde «papa fina» ao «bacalhau frito» de tasca, embarcava tudo. Ora vejam:

Trinteiro-REDZMOTE

Gosto de carneiro assado

Gosto de couve flor

Gosto de queijo e pão

Gosto de vinho e licor

I

Gosto de passas e nozes

Gosto de uvas e maçãs

Gosto também de romãs

Gosto de boas iroses.

Gosto de bifes às dozes

Gosto de rim bem grelhado

Gosto de feijões guisados

Gosto de arroz com marisco

Gosto de um belo petisco

Gosto de carneiro assado.

saboneteira-2 - REDII

Gosto de iscas com batatas

Gosto das mesmas sem elas

Gosto também de pielas

Gosto de conserva em lata.

Gosto de pasteis de nata

Gosto de bolos de amor

Gosto seja do que for

Gosto de abóbora menina

Gosto do que é papa fina

Gosto de couve flor.

III

Gosto de uvas ferrais

Gosto de amoras da horta

Gosto das belas marmotas

Gosto de arroz com pardais.

Gosto de peras verdeais

Gosto do bom mexilhão

Gosto do belo melão

Gosto também de repolhos

Gosto de comer com molhos

Gosto de queijo e de pão.

IV

Gosto de bom bacalhau

Gosto da bela salada

Gosto de carne estofada

Gosto do bom carapau.

Gosto de farinha de pau

Gosto de alho com ardor

Gosto, gosto, sim senhor

Gosto de bom peixe frito

Gosto do belo cabrito

Gosto de vinho e licor.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.