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sexta, 21 outubro 2016 12:12

DÉCIMAS POPULARES

Escrito por 

TUDO O QUE VEM À REDE É PEIXE

Há anos que cirando por trilhos e veredas serranas, que visito aldeias e povoados, falando com toda a gente à procura de documentos orais  e escritos, papéis velhos, manuscritos ou impressos. E foi nessa minha romagem pelo concelho que, em 1995, me chegou às mãos um maço de folhas, formato 34x22,5 cm, nas quais, de alto a baixo, estão manuscritas, em duas colunas, umas tantas décimas populares, isto é, composições poéticas constituídas por um mote (quatro versos) glosado em estâncias de dez versos, rematando cada uma delas com um verso do mote. Composições ainda muito em uso nos meios populares alentejanos (procedi a alguma recolha delas quando estive em Castro Verde) mas não tanto por estas bandas do Montemuro. As últimas que conheci por cá, e delas já fiz uso algures nos meus escritos, são atribuídas ao Mestre Zé Aveleira, (de Cetos) já falecido há muito.

DÁCIMAS -REDZOs originais que manuseei, em 1995, eram pertença do senhor Adelino Soares, da Carranqueira, que os herdara dos seus antepassados. Chegados à minha mão, apressei-me a tirar fotocópias e é delas que transcrevo as composições que se seguem, postas em duas colunas e último verso a negrito, por forma a ver-se reproduzido o mote, em cada uma das décimas. A ilustração é um vintém (vinte reis) "cunhado" em 1884, por D. Luís. Ela faz parte do meu mealheiro e talvez represente o valor deste meu apontamento.

Os temas abordados, sem grande rigor métrico no verso,  são os mais diversos. Falam de questões amorosas,  de "desgrácias",  com  tom lamuriento aqui,  com um tom bazófia ali,  tal qual se presencia ainda hoje nas cantorias ao desafio. Algumas revestem aspetos de coragem, de valentia com caráter patriótico e também de crítica social e governação política. E temas bíblicos também. Hoje, como ontem, cantador ou cantadeira que se preze, numa cantoria ao desafio, seja em feira, casamento ou romaria,  desafia sempre o parceiro a dizer quem foi o homem primeiro, a primeira mulher e o que sabe sobre a arca de Noé. 

Manuscritos anónimos, escritos na primeira pessoa, todos com a mesma letra e grafia arcaica com o "ph" a servir de "f",  letra igual em todos eles, indicia estarmos na presença de um poeta popular (ou cópia dele) que viveu no último quartel do século XIX, cuja obra, certamente cantada à desgarrada, em feiras e romarias, terá passado à literatura oral, pois não faltam ali as façanhas dos Doze Pares de França, de Carlos Magno, de Oliveiros, de Roldão e Ferrabraz de Alexandria, os conquistadores da Turquia, muito em voga nos serões de minha casa, quando eu era pequeno. E também me lembro do meu pai trautear frequentemente os primeiros versos da composição que se segue, na primeira coluna: "sou soldado assentei praça". Na segunda décima, com a mesma marca popular, temos um retrato deste país que somos,  país  profundo,  país de glórias passadas, mortas,  viveiro  histórico  de ladrões,  endividado até à medula, com os estrangeiros a sacar-nos a nossa riqueza por má governação dos nossos políticos: "Portugal estás desgraçado". Ora vejam em ortografia atual e a atualidade do tema. E ninguém diga que o povo dorme, que não vê nem sente o que se passa em seu redor. Só que é assim. Os governantes  (nacionais e locais) não ouviram este poeta popular, tal como não ouvem a mim.


 
Mote

Sou soldado assentei praça

No Regimento de Artilharia

Sirvo El-Rei D. Luís

E à Rainha D. Maria

I

No dia 9 de outubro

De mil oitocentos e setenta e um

Sem pensar de modo algum

Qual seria o meu futuro.

Quando então me julgava seguro

Foi que experimentei a desgraça

Eu bebi do cálice a taça

E revesti-me de coragem

Quando escreveram a mensagem

Sou soldado assentei praça.

II

Eu fiquei muito assustado

Quando me leram certos artigos

Então observei os castigos

Do mísero e pobre soldado

Meu coração ficou magoado

Sem prazer e sem alegria

Roguei à Virgem Maria

Pra ser feliz com as armas

E no fim ganhar as palmas

Ao Regimento de Artilharia.

III

Quando tinha 15 dias de praça

No calabouço dei fundo

Ai meu Deus que se acaba o mundo

Eu vou dar fim à minha raça.

Dura certa coração trespassa

Que me chega até à raiz

Qual foi o crime que eu fiz

Para sofrer tanto rigor

Para a bala meu peito expor

Eu sirvo El-Rei D. Luiz

IV

Mas embora tanto sofrer

Eu jurei as santas bandeiras

Para no centro das fileiras

Minha Pátria defender.

Eu sempre tenho de morrer

Quer de noite quer de dia

Ferrabraz de Alexandria

Também sofreu igual desgosto

Eu a servir estou disposto

À Rainha Maria Pia.

Mote

Portugal estás desgraçado

Estás devendo muitos milhões

Portugal és um viveiro

Onde fazem ninho os ladrões

I

Portugal foste feliz

Possuíste grandes tesouros

Colheste grandes louvores

Segundo a história nos diz.

Já foram nossos os brasis

Em outro tempo passado

Portugal foi respeitado

Foi poderoso e foi valente

Hoje em dias presente

Portugal estás desgraçado.

II

Em outros tempos antigos

Portugal sempre brilhou

Com glória triunfou

Na maior força dos perigos.

Inda hoje existem livros

Das nossas brilhantes acções

Que tivemos com as mais nações

Portugal sem dever nada

Nesta época desgraçada

Está devendo muitos milhões.

III

A este país vem parar

Toda a classe de ladrão

E a desgraçada nação

Po-la não saberem governar.

Os artistas vivem a chorar

Quem se ri são os estrangeiros

Vêm aqui buscar dinheiros

Deixam-nos a pedir esmola

De tratantes e mariolas

Portugal és um viveiro.

IV

A ladroeira está apurada

Os ladrões cada vez são mais 

Os grandes são os principais

Da maçónica aclamada.

Os que para ali têm entrada

Têm logo grandes grilhões

Ilustres nobres brasões

Quero pois mais de 3 mil

Portugal és um covil

Onde fazem ninho os ladrões.

 
         1-D.lUIS-ROSTO - E VERSO
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.