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sexta, 01 julho 2022 00:00

VERBO E VERSO

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VERBO E VERSO

Sou avesso ao complicómetro

Simplificar tem sido o meu lema

Agito as águas como quem rema

Impelido pelo simplificómetro,

Isso, tirante o meu nascimento

Que já foi há muito, muito tempo

E dito fica, para não haver enganos,

Que foi há oitenta e três anos.

 

abilio - bébéREDZNeste sabido mundo complicado

Para quê complicá-lo ainda mais?

Se somos diferentes, todos iguais

A ninguém posso ser comparado

E neste mundo de fio em novelo

Não posso ser tomado por modelo.

Não importa o que como e o que bebo

Em festa, em família ou solitário

Importa é o que penso e o que escrevo,

No papel, no iPad, no computador

Cada qual meu confidente secretário

Companheiros de arrimo e de fadário

Gordo de tristezas vestidas de humor.

 

No sigilo todos eles são excelentes

E segredam-me sábios de certa ciência

À vez, para ter calma, para ter paciência.

E dizem-me: guarda para ti o que sentes

Sem dá-lo a saber a outras gentes.

Mais. Para quê transferir para elas,

Para amigos e familiares as mazelas

Que tuas são e ninguém vai curar

Sabendo-as? Para quê lhas contar

Então? Não. O melhor é comer e calar,

Pois tudo acaba, tem fim, vida e morte.

 

Abílio-ReduzaNão hesites, palmilha os teus trilhos

Rompe o caminho, segue em frente

E livre de encrencas e de sarilhos

Simplifica a tua caminhada, ciente

De que seja qual for o momento

Sempre, sempre, de qualquer sorte

“Não há machado que corte

O rebelde fio do pensamento”.

 

E já se foram tantos dos teus amigos

Companheiros que tu ouvias e te ouviam

Partilhando da vida as experiências.

E sempre, sempre que eles partiam

(Fenómeno que escapa às ciências)

Consigo levavam sem clemência

Parte de ti e dos vossos tempos idos.

E se não vives com eles, adultos e crianças

Já não vives, sobrevives com lembranças.

 

E a alegre e grande roda de gente

Que te rodeia, toda essa malta

Habituada a rir e a ir contigo

No gozo e no riso, dispensa coisas tristes

E nem sequer dará pela tua falta

Pois não te ouvindo nem vendo,

Tanto tempo e tão pouco te lendo,

Sinal dão de que tu já não existes.

 

abílio-pena - reduz - CópiaSabemos nós, teus fiéis confidentes,

Que te passeias pelas serras, pelos montes

Por vergéis, campos desertos de gentes.

Que ouves o tilintar das macetas e ponteiros

A trabalhar as pedras por pedreiros

A levantar cómaros para segurar as terras

Das encostas. Que bebes a água das fontes

Mas em redondo, perto ou longe, ninguém canta

E o silêncio e a solidão não te encanta.

Desapareceu o verbo no despovoado universo

Que vês onde não soa nem sua vida. Somente o verso.

 

Assim, finda a canção, terminada a moda,

A cantata serrana, a diversão, a dança e o riso

Nem por minutos, enquanto tiveres tino e siso

Parte e nem por segundos hesites.

Recusa-te, como tantos, a ser um morto-vivo.

E fá-lo como quem ainda pensa e sente

Quando sentires que deixaste de ser gente.

Não importam os louros da vida e da glória

Pois, desaparecida que seja a matéria,

Pobres, ricos e famosos condecorados

Pelos feitos heroicos de vida e de história,

Sejam a Cruz de Cristo e Santiago de Espada

Escaqueirados os hemisférios da memória

Acabam vendidos na feira da ladra

A eterna feira da eterna humana miséria.

 

abilio-reduzE chegada a hora de abandonares a roda

Ouve e retem bem o que te digo:

Não busques instituições de saúde

Com batas e máscaras no rosto

Pois para onde quer que se olhe

O melhor fim é o que se escolhe

E não o que socialmente é imposto.

E se nos estudos que fizeste noite e dia,

Ao pensamento nunca deste ócio

Não precisas de ousada filosofia

Não precisas de recorrer a Sócrates

Para distinguires saúde de negócio

E a diferença entre Hipócritas e Hipócrates.

 

Seja onde for, qualquer que seja a latitude

De ti só restará o carater, a personalidade, a atitude,

O registo da pegada que deixares na caminhada

Dos afetos, do pensar e do agir. Mais nada.

Nem semblante, nem tosco traço de caritatura

Nada que tenha peso e medida da tua criatura.

E já que nasceste berrão e contranatura

Com o montão de dores e ais inerentes

Ao difícil parto, parte em silêncio, sem queixas

Sem testamento, codicilo, itens, deixas,

Parte livremente, segundo a tua vontade

Nesse gesto livre e de humana dignidade

De partir e ser pessoa. E fá-lo calado, sem alarido

De tal modo que quem te cerca, todas as gentes

Todos os teus amigos próximos e parentes

Saibam que pariste, só depois de teres partido.

Na certeza de que, se riste a chorar vivendo,

O mesmo fazes a rir e sem chorar, morrendo.

 

Seguro e ciente do fim, seja qual for o cenário

Fá-lo de pé, como um carvalho centenário.

E mesmo sem cerne, lorcado por dentro

Lúcido, olhando em redor, o teu pensamento

Porque não és crente, não subirá aos céus

Ficará em terra firme como os teus sentimentos

Pois o “END” da narrativa dedicarás aos teus.

Abílio/10/06/2022

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.