Neste sabido mundo complicado
Para quê complicá-lo ainda mais?
Se somos diferentes, todos iguais
A ninguém posso ser comparado
E neste mundo de fio em novelo
Não posso ser tomado por modelo.
Não importa o que como e o que bebo
Em festa, em família ou solitário
Importa é o que penso e o que escrevo,
No papel, no iPad, no computador
Cada qual meu confidente secretário
Companheiros de arrimo e de fadário
Gordo de tristezas vestidas de humor.
No sigilo todos eles são excelentes
E segredam-me sábios de certa ciência
À vez, para ter calma, para ter paciência.
E dizem-me: guarda para ti o que sentes
Sem dá-lo a saber a outras gentes.
Mais. Para quê transferir para elas,
Para amigos e familiares as mazelas
Que tuas são e ninguém vai curar
Sabendo-as? Para quê lhas contar
Então? Não. O melhor é comer e calar,
Pois tudo acaba, tem fim, vida e morte.
Não hesites, palmilha os teus trilhos
Rompe o caminho, segue em frente
E livre de encrencas e de sarilhos
Simplifica a tua caminhada, ciente
De que seja qual for o momento
Sempre, sempre, de qualquer sorte
“Não há machado que corte
O rebelde fio do pensamento”.
E já se foram tantos dos teus amigos
Companheiros que tu ouvias e te ouviam
Partilhando da vida as experiências.
E sempre, sempre que eles partiam
(Fenómeno que escapa às ciências)
Consigo levavam sem clemência
Parte de ti e dos vossos tempos idos.
E se não vives com eles, adultos e crianças
Já não vives, sobrevives com lembranças.
E a alegre e grande roda de gente
Que te rodeia, toda essa malta
Habituada a rir e a ir contigo
No gozo e no riso, dispensa coisas tristes
E nem sequer dará pela tua falta
Pois não te ouvindo nem vendo,
Tanto tempo e tão pouco te lendo,
Sinal dão de que tu já não existes.
Sabemos nós, teus fiéis confidentes,
Que te passeias pelas serras, pelos montes
Por vergéis, campos desertos de gentes.
Que ouves o tilintar das macetas e ponteiros
A trabalhar as pedras por pedreiros
A levantar cómaros para segurar as terras
Das encostas. Que bebes a água das fontes
Mas em redondo, perto ou longe, ninguém canta
E o silêncio e a solidão não te encanta.
Desapareceu o verbo no despovoado universo
Que vês onde não soa nem sua vida. Somente o verso.
Assim, finda a canção, terminada a moda,
A cantata serrana, a diversão, a dança e o riso
Nem por minutos, enquanto tiveres tino e siso
Parte e nem por segundos hesites.
Recusa-te, como tantos, a ser um morto-vivo.
E fá-lo como quem ainda pensa e sente
Quando sentires que deixaste de ser gente.
Não importam os louros da vida e da glória
Pois, desaparecida que seja a matéria,
Pobres, ricos e famosos condecorados
Pelos feitos heroicos de vida e de história,
Sejam a Cruz de Cristo e Santiago de Espada
Escaqueirados os hemisférios da memória
Acabam vendidos na feira da ladra
A eterna feira da eterna humana miséria.
E chegada a hora de abandonares a roda
Ouve e retem bem o que te digo:
Não busques instituições de saúde
Com batas e máscaras no rosto
Pois para onde quer que se olhe
O melhor fim é o que se escolhe
E não o que socialmente é imposto.
E se nos estudos que fizeste noite e dia,
Ao pensamento nunca deste ócio
Não precisas de ousada filosofia
Não precisas de recorrer a Sócrates
Para distinguires saúde de negócio
E a diferença entre Hipócritas e Hipócrates.
Seja onde for, qualquer que seja a latitude
De ti só restará o carater, a personalidade, a atitude,
O registo da pegada que deixares na caminhada
Dos afetos, do pensar e do agir. Mais nada.
Nem semblante, nem tosco traço de caritatura
Nada que tenha peso e medida da tua criatura.
E já que nasceste berrão e contranatura
Com o montão de dores e ais inerentes
Ao difícil parto, parte em silêncio, sem queixas
Sem testamento, codicilo, itens, deixas,
Parte livremente, segundo a tua vontade
Nesse gesto livre e de humana dignidade
De partir e ser pessoa. E fá-lo calado, sem alarido
De tal modo que quem te cerca, todas as gentes
Todos os teus amigos próximos e parentes
Saibam que pariste, só depois de teres partido.
Na certeza de que, se riste a chorar vivendo,
O mesmo fazes a rir e sem chorar, morrendo.