ANIVERSÁRIO
Numa prole de sete irmãos fui o sexto a vir ao mundo e, segundo a minha mãe dizia, difícil nascimento foi o meu: é «travesso», é «judeu», «nasceu ao contrário!», justificação para o embrionário espírito de rebeldia que eu revelava em pequeno e, no meu juízo de agora, pergunto-me se isso se devia ao meu temperamento natural ou aos normativos injustos dos adultos a que eu desobedecia para tormento deles e meu.
Foi meu natal em 10 de Junho de mil novecentos e trinta e nove, ano em que rebentou a II Guerra Mundial. Como o tempo foge. Hoje, ao escrever estas linhas, a minha memória se aviva, se remove. Daí que, a tantos anos de distância da glória de ter nascido, já lá vão sessenta e sete anos cheios de felicidade, tristeza, ilusões e desenganos, não sei se fantasio, se invento, se minto, mas o que verdadeiramente sinto e cogito cá para mim, a tal lonjura de tempo, é que essa minha relutância em vir ao mundo, em nascer assim a ver a luz do dia com o olho que não vê, não foi uma travessura contra a minha querida mãe, Gabrielina de seu nome, Pereira de apelido. Foi sim, algo vivido, impensado, que não se estuda nem lê. Foi sim, uma coisa singular e rara de repulsa à prepotência e à ditadura de então, ambas indignas de serem vistas com os olhos da cara.
Tudo pronto para eu nascer. Era o dia. Chegou a hora. Bombeiros, ambulâncias e médicos por perto não havia. Bacias de água quente, panos, tesoura, linhas, rebentadas as águas uterinas, contracções, forças esgotadas, suores, gritos, dores, é agora, mas eu é que não saía. O chá de três adubos - azeite, unto e manteiga de vaca - preparado a preceito não fazia qualquer efeito. A dança do ventre da parteira e da parturiente, ambas de pé, frente a frente, separadas pela costumeira almofada parideira, nada. E o mesmo sucedia com a aguardente açucarada e com o chá de cornelho, aquele grão azul-negro, fungão da espiga de centeio e trigo, que se consumia assim e, também, se vendia para a botica. Instala-se o medo, o receio. A sondar a posição do fedelho, a mão besuntada da parteira caseira, conhecedora de todas as manhas dos travessos nascituros, penetra entranhas dentro e começam os sussurros. «Não deu a volta», «não deu a volta» «que tormento», «seja o que Deus quiser», «força, força, mulher». Contracções, suores, gritos, muitas dores e sangue à mistura. Com pouca sorte, mãe e filho bem podiam sair dali para a sepultura.
Não era, porém, chegada a altura da morte. Era sim chegada a hora do nascimento e da vida. É Agora! “Ele aí vem” dizem para alívio da minha mãe que não ouvia ninguém. “Aí vem”...e vinha mesmo: dobrado, peito colado aos joelhos, pés à testa unidos, cabeça entre os braços estendidos, na posição de remador de regata a tomar balanço, tanto quanto hoje alcanço, o meu olho que não vê foi o primeiro a ver o mundo, mercê de todo aquele sofrimento, trabalhos, dores, gritaria suores e canseiras. Que alívio! Que gostoso é fazer um filho, que doloroso é pari-lo.
Enfim, são, escorreito, rebelde e berrão, não nasci de cabeça, segundo as leis da natureza, nasci a meu jeito, corolário que aceito, pois não digo, com certeza, como Camões: «o dia em que nasci, moura e pereça», antes pelo contrário.
in «Memórias Minhas - Portugal, Moçambique», ed. 2006