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quarta, 10 janeiro 2018 14:55

MEMÓRIAS MINHAS - PENSAMENTO FUGAZ

Escrito por 

HISTÓRIA VIVA

Folheio «O mundo de ontem» de Stefan Zweig e deparo imediatamente com uma dedicatória a exalar memórias, afetos,  sentimentos e lugares. Há quanto tempo! Uma centelha de história pessoal vivida na juventude, nunca dita nem publicada. Mas, nesta minha idade sénior, 78 anos de vida andados, a experiência consolidou em mim o ditado popular relativo ao relevo terrestre: «depois de uma montanha, outra logo vem», a dificultar ou a facilitar a jornada do caminhante que, por deveres de ofício, granjeio da vida, ou busca de conhecimento, forçado é a deslocar-se e a vencer distâncias entre sítios, gentes e culturas. O mesmo sucede no mundo íntimo das pessoas e no trajeto de sentimentos, de pensamentos, de amizades, de amores e afetos, quantas vezes rebeldes,  ondulados e desobedientes aos preceitos legais e morais estabelecidos. Não é preciso demonstração. Tudo o mundo sabe disso.

DEDICATÓRIA - RED

Este livro foi-me oferecido em 10-06-66 (dia dos meus anos) por uma pessoa que, com inteligência e subtileza bastantes, descobriu em mim o precoce lenhador que vim a ser na floresta das letras. O lenhador que, de podão em punho, no exercício da sua profissão docente, em livros, na imprensa e redes sociais digitais, procurou abrir algumas clareiras no matagal do analfabetismo, das superstições, das crenças em bruxas, lobisomens e almas penadas. Clareiras no matagal e silvedos enrodilhados numa mentalidade mendicante que vem desde a Idade Média. Pede-se por tudo e por nada. Os governantes, monárquicos e republicanos,  gastaram e gastam os foros e os impostos a seu critério, declinando a resolução das mazelas sociais para o produto dos peditórios e da solidariedade humanas.  E não são RARAS as pessoas que usam a solidariedade e o produto dos peditórios em proveito próprio. Oportunistas elas não integram as instituições para servi-las, mas par servir-se delas. Atento, tenho rompido mato dentro. Mas inglória tem sido a tarefa. Clareira aberta, não há enxada, podão ou gadanha que elimine o escalracho, que elimine a grama que larva fundo em terra lavrada ou queimada.

 E estou a ver o brilho daqueles olhos castanhos de encanto, fixados nos meus, a darem-me «os parabéns» e a pedirem-me que lesse a obra, pois tenda-a lido e dela gostado,  era uma forma de partilhar comigo os seus conhecimentos e os seus afetos. 

UM LIVRO. E, jovem que eu era, a narrativa nele contida ajudar-me-ia a crescer um pouco mais como ser humano, longe dos meus pais, em terras de África. Uma forma de enfrentar o futuro, debruçado sobre o passado, guiado pela mão de um pensador e escritor europeu.

Claro que li o livro de corrida e de pronto. Mais do que uma vez. Nunca mais o larguei, mesmo depois de ter comprado e lido tantos outros. Mas ele não é um livro qualquer, um livro apenas. Figura nas estantes da minha biblioteca, como um livro especial. Um entre centenas. E, passados tantos anos, viajando de continente em continente, de cidade em cidade, de moradia em moradia, eu não sei dizer se hoje, passando os olhos pelas estantes, o reencontrei por acaso, ou se mão invisível me guiou até ele, como que a forçar-me a regressar ao passado, ao mundo de ontem, àquele mundo de juventude, de virilidade, ao tempo de noites inteiras sem dormir, sem sono, nem cansaço, a desenrolarmos ambos o filme da vida temperada pelos impulsos  das paixões escaldantes e apetites próprios da idade, saboreados especialmente naqueles instantes especiais. Ó gente! Quem ignora isso? Para quê dizer mais? 

E se Stefan Zweig «invoca com nostalgia os esplendores da sua vida de juventude antes da primeira guerra mundial e, com amargura, as catástrofes vividas após ela», eu invoco esse meu tempo de juventude com a mesma nostalgia e com a amargura de quem, por circunstâncias várias (que também envolveu as guerras coloniais)  ser forçado a apagar com lágrimas a fogueira dessa paixão, intensamente vivida. As lágrimas do adeus e despedida para sempre. Só que essas labaredas apaixonadas, mesmo que em lágrimas afogadas,  nunca se apagaram de vez. Nós, humanos,  somos memória e, mesmo que, na cronologia da história, nacional ou pessoal, os factos e as experiências vividas se esbatam no tempo,  ou aparentemente se esfumem, a leveza do pensamento, quando menos esperamos, num momento fugaz, transporta-nos, num repente, lá para trás, como relâmpago resplandecente que alumia os tempos e lugares distantes. Acontece com toda a gente. E dessa realidade fatalista, não escapa o ser humano, seja letrado ou ignaro, bem falante ou surdo ou mudo. E, no meu modesto critério, não conheço ainda neurocientista que, no seu estudo, tenha desvendado tal mistério. Sim, quem me explica isto tudo, que sendo meu natural, sei ser igual aos demais humanos? Aparentemente adormecido nas cinzas do  esquecimento, há sempre um chamiço que resiste e, a qualquer momento, qual pirilampo que naquele limbo existe, ávido de liberdade, irrompe a brilhar na noite dos tempos e das recordações. Assim comigo. Assim com tanta gente. Inda que nem toda a gente o diga, ou diga raramente. Pois falar de amores vividos, cantados ou sofridos é tabu numa sociedade letrada/iletrada. Isso é coisa para trovadores, poetas e escritores, não para atrevidos  escreventes. Só nas «cantigas de amigo» de D. Dinis, onde ele fala por ela, pois amor proibido não se escreve, não se diz, nem se revela.

Um nadinha mais velha do que eu,  este texto, nunca dito, nem lido, a ela dedicado (será morta ou viva?) tinha de ser escrito. É da consciência um imperativo. E insuflado vai do carinho e do afeto iguais aos que exala a dedicatória que ela apôs no livro «com o sentimento mais puro», que me permitiu ler, eu seguro e ela segura de quem eu era, ou viria ser.

Filha de pai europeu e de mãe negra africana, o sangue que lhe corria nas veias tinha a fluidez e o caudal dos grandes rios da Europa e da África. No seu corpo esbelto, figura humana esculpida em pau-rosa (também conhecido pelo nome de 'pau-rosa-mulatinho, pau-rosa-itaúba e pau-rosa-imbaúba'), no seu corpo torneado corriam as cores, os aromas e o clima da civilização europeia caldeados com as cores, os aromas e o clima escaldante da cultura africana.

Órfã de pai, ainda criança, arrastava consigo a angústia e a curiosidade de querer saber tudo sobre o continente e o país distante donde partiram as caravelas, as naus, os galeões, os exploradores, os colonizadores,  os esclavagistas e os colonos dispostos a fazerem pela vida, longe da terra natal. Todos os aventureiros, a escória social e a gente séria, todos capazes de enfrentarem as febres e as feras da selva, dispostos à descoberta e a viverem com as mulheres nativas. Dispostos a constituírem família, tal qual foi o caso dos seus progenitores. Nem todos tinham tal ousadia, mas em homens e mulheres assim, racismo era coisa não havia. Ela lia muito e, porque muito lia, conhecia Raquel, Jacob, Labão e Lia, mas eu, de cajado na mão, só a ela servia.

LIVRO - REDZA história e as narrativas europeias (não havia ainda escritores nativos laureados) faziam-na navegar em sentido inverso à rota seguida pelo seu pai e por mim próprio. Mulata, com a Europa e África dentro de si, sentia-se como que naufragada num qualquer oceano, no meio das navegações, mar de interrogações sem respostas. E eu, oriundo desse exótico mundo distante, atravessados os mares,  era como se fosse uma tábua de salvação, um porto seguro de abrigo. E o mesmo comigo. Longe dos meus familiares, ultrapassada a linha do Equador, a viver sob outros céus -  tal é a sorte - ela, qual Cruzeiro do Sul, era para mim a Estrela do Norte.

Ambos funcionários públicos, a conveniência dos serviços arrancou-nos por transferência ao seio dos amigos. E eu, recém chegado à terra negra, longe do chão que me curtiu as plantas dos pés anos seguidos, tão curtidas e lisas quanto as dos pé daquele bosquímano no filme "Os deuses devem estar loucos",  ignorando, em absoluto, a africana cultura, também ela descalça, de tanga, seminua,  eis-me a folhear com avidez o livro humano posto à minha disposição. Ela era, para mim, o território a descobrir, a costa e o sertão. E ternurenta se dava à entrega e descoberta. Eu, explorador europeu,  impelido pela força do amor e do desejo, confiante,  penetrava floresta dentro e, ora vai, ora vem, em avanços e recuos sucessivos, insaciável, seguro estava de desencantar o tesouro que buscava e, num só instante, ofegante, com ela partilhava. Reporto-me, pois - não é ilusório -  aquele trilho andado e suado a dois, impossível de fragmentar em sofisticado laboratório que seja. Assim, tal qual como conto, ciente que o sinta e veja todo o ser comum. Pronto. Dois em um.

Eram noites inteiras de conversa e de amor. Terras, gentes, culturas, continentes. Não faltava a carícia, o afago, o verbo e o resto. O beijo era o nosso beijo. Não era o beijo cinéfilo e público de artistas, trabalhado, fingido, igual aqueles tantos que mostrei como projecionista de cinema que fui. Era o beijo em recato, só nosso, columbino, no escuro saboreado, lambuzado e sentido. Rebobinando o filme, nesta minha idade já avançada,  testemunho quanto ingrata é a vida, a unir e a separar os seres humanos que se completam nos gestos, nos gostos e nos interesses. 

É isso. Já escrevi algures, reportando-me ao ser humano e por experiência vivida, que a fome, a vontade, a inteligência, o sentimento, o ódio, o sofrimento e o amor não têm cor. E pergunto qual de nós, ou qual de vós, aqueles que têm uma relação de verdade com as letras e com as gentes,  que cante ou sofra de amores, aquele que, na sua condição humana, por amores folgue ou pene, abertos os corações, não tenha a sua Dinamene, não tenha o seu Camões,  aquém ou além da Taprobana. 

E chegou a hora do adeus, a hora da despedida. Seguimos rumos diferentes de vida. Nunca mais nos vimos. Mas nós somos memória. E, a provar isso, cá estou eu a retornar ao mundo de ontem, ao mundo dela e meu. Amores vividos em tempo de guerra colonial que já la vai,  neste século XXI, de outras guerras na Europa e fora dela, em que as potências mundiais procuram enriquecer o seu arsenal com mísseis de longo alcance, portadores de bombas que incorporam a ciência letal, eis que,  passados tantos anos de vida, o míssil do meu pensamento dirigido a terras longínquas, rompendo céus e oceanos, transporta na sua ogiva, tão só, o «sentimento mais puro».

Abílio/janeiro/2018

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.