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sábado, 01 junho 2013 21:25

DESCOLONIZACÃO (2)

Escrito por 

Num dos canais pagos da TV, não me lembro, de momento, qual deles (sei é que, por enquanto, ainda me dou ao luxo de tê-lo)  existe um programa com o título "COMO SE FAZEM AS COISAS". É garantido, posso jurá-lo, que esse programa ainda não existia, não tinham ainda sido postos à disposição do mundo estes sofisticados meios de comunicação social, e já eu tinha aprendido a fazer muita coisa, já eu tinha a ideia,  não de saber tudo e de fazer tudo,  mas, com ferramentas muito rudimentares, fazer algumas coisas novas e  recuperar outras fora de uso. Pois a tanto me impelia o gosto, a imaginação e, sobretudo, a necessidade.

 Não vou recuar ao meu tempo da juventude, tempo em que cada habitante da minha aldeia era um «SOBREVIVENTE», isto para mencionar também outro programa desses mesmos canais que ensina como, em condições adversas e extremas, uma pessoa pode manter-se viva, uma pessoa pode sobreviver, usando a imaginação e a inteligência.

Vou reportar-me a tempos posteriores, a começar pelo meu tempo de «retornado» de Moçambique. Mais um cidadão  chegado à Metrópole sem «cheta», casado e com um filho que a minha mulher, Mafalda, transportava no ventre, quando em 1976, na Estação dos Correios de Lourenço Marques ambos (e quantos mais?) vivíamos a azáfama de fazer e desfazer embrulhos de pequenas coisas domésticas, livros incluídos, que só podiam «embarcar» depois de listados e fiscalizados pelos funcionários de serviço.

Recordar isto, tantos anos passados, não é para chorar sobre o leite derramado, como tenho visto por aí em alguns textos publicados sobre o mesmo assunto, nos quais só se refere a descolonização e as suas consequências, mas nunca as suas causas. Os militares recordam a camaradagem, os perigos corridos nas picadas, as aventuras próprias da guerra e da idade. Os civis reportam o seu sofrimento, o sofrimento dos seus parentes, pais e avós, mas nem uma palavra para o sofrimento e a revolta  dos naturais que, em tempos de expansão e colonização, por acordo ou à força, viram as suas terras invadidas e ocupadas.

Vivi em terras de Moçambique 17 anos. Vi o relacionamento social, profissional e doméstico entre as diversas etnias e culturas do território. Nunca fui indiferente ao que vi e vivi. Assisti às tropelias da descolonização. Perdi «teres e haveres», perdi quase todos os amigos. Mas recusei-me sempre a olhar somente para o lado pessoal da conveniência, ainda que não deixasse de protestar contra as injustiças, como se verá mais adiante.

Tudo isto para «retornar» ao programa televisivo «SOBREVIVENTES»  e ao programa «COMO SE FAZEM AS COISAS».  É que,  quando não se tem dinheiro, como era o caso de todo o «retornado», ou ele não chega para comprar o que necessitamos, há que recorrer à imaginação e, ou se fazem as coisas de novo ou se recuperam as velhas. Eu e a minha mulher, ambos com a mesma formação académica, sintonizados nos mesmos objectivos e com o mesmo gosto de «saber fazer e recuperar», com dois filhos a crescer e a não caberem na cama-berço, foi só proceder à aquisição das ferramentas e matérias primas necessárias, dispostos que estávamos a manejar as ferramentas de carpintaria, com a ajuda das lições aprendidas nos livros  «Faça Você Mesmo».

Não estivemos à espera que IKEA chegasse a Portugal, para mobilarmos os dois quartos dos filhotes. As tábuas compradas na serração, em bruto, por serem mais baratas, não tardaram a tomar forma de camas, com a ajuda da banca, do berbequim, da plaina, das serras circular e de recortes, de uma marca muito conhecida, nos anos oitenta do século XX. São ferramentas e peças que hoje ganham ferrugem na minha garagem. Mas que elas suaram que nem burro, para executarem o desenho feito a régua e esquadro, lá isso suaram. A minha mulher, digo-o isto em tributo à sua memória,  era daquelas senhoras que, sendo uma professora de reconhecido mérito, no ensino e no trato, ainda hoje dito pelos seus ex-alunos, não se importava de sujar as unhas. Tão facilmente manejava o lápis e o pincel para desenhar e pintar, como pegava no sacho para semear salsa, coentros e morangos. A ela e aos filhos pequenos se devem algumas árvores de fruto que existem no nosso quintal.

Ambos amigos de «velharias», encontrámos um dia, um baú, revestido a pele, com aspecto de pergaminho recurvado, seco e roto, com buracos em vários sítios, com  a ossatura a descoberto. Foi olhar e comprar. A recuperação viria depois. Coube-me a mim fazê-la. Eu vos conto:

Era uma vez um baú revestido com pele. Foi ao Brasil e veio. Ao Brasil ou à África, não sei bem, o que sei é que ele retornou e que as viagens e o tempo lhe retiraram o conteúdo e lhe romperam o fato. Velhinho e esfarrapado, esqueleto à mostra, havia que  recuperá-lo. Despi-o completamente e talhei a meu jeito os pedaços de pele que resistiram. Depois, com uns metros de serapilheira, cola, broxas amarelas, verniz, ferragens novas a imitar as antigas, mãos à obra. Ele aqui está recuperado, já vai um par de anos. Eram os meus filhos pequeninos. Na tampa, desenhadas com broxas, as  letras M C, iniciais de Mafalda Carvalho. E na frente o A, de Abílio. Dentro dele estão  livros e cadernos escolares dos meus filhos. E bem no fundo o «contrato de compra e venda» e respectiva escritura feita no Terceiro Cartório Notarial desta Comarca da fracção autónoma de um prédio em «regime de propriedade horizontal, situada no quarto andar,  constituída por um hall de entrada, uma sala comum, dois quartos, duas casas de banho, cozinha, casa de banho para serviçal e uma varanda de serviço», situada na cidade de Lourenço Marques, no cruzamento da Avenida António Augusto Castilho e Latino Coelho.

Na mesma pasta está mais papelada relacionada com a descolonização de que, nós, como tantos outros portugueses,  fomos mais objectos do que sujeitos. Por exemplo, a apreensão de veículos automóveis, já depois de autorizada a exportação e pagos os devidos direitos alfandegários, de acordo com as leis vigentes.

Eis um excerto de uma extensa e fundamentada exposição dirigida, em 1976, ao senhor Ministro da Justiça de Moçambique e Consulado Português em Lourenço Marques, da qual nunca obtive resposta alguma. Dela transcrevo a reivindicação do retorno e posse do meu automóvel de marca ISUZU BELLET, com dois anos rodados, comprado às prestações, que foi incluído no lotes de viaturas aprendidas::

«No dia 28 de Fevereiro, o exponente viu o seu carro a circular na cidade por um elemento das Forças Populares, dado que vestia a farda das mesmas. Face a isso, não pode o signatário manter mais tempo em silêncio a sua indignação pela extorsão arbitrária de um bem que adquiriu com muito custo e trabalho, o qual não «deu», não «vendeu», nem dele prescindiu, pois mesmo que, neste caso em particular, e dos portugueses em geral, tivesse cabimento o conteúdo da alínea c) do Artº 2º. da Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados, adoptada pela XXIX  Sessão da Assembleia-geral da Organização das Nações Unidas, reconhecida pela República Popular de Moçambique, no Artº 8º da sua Constituição, que admite a expropriação de bens particulares, acha-se o exponente no direito de recusar a injustiça cometida, pela falta de acordo das «duas partes».

Exposto isto, para que não fique omitida mais uma fase do processo da descolonização e para que V. Exa., como Cônsul Geral de Portugal em Moçambique, faça as diligências políticas que o caso requer, o exponente aguarda que lhe seja feita Justiça. Maputo, 28 de Fevereiro de 1976».

Ler esta exposição, redigida sem qualquer apoio jurídico, leva-me a reconhecer hoje, aos 73 anos de idade,  que o volume de trabalho e de canseiras que tive, dirigindo-me às autoridades, pedindo justiça, era proporcional à ingenuidade e à boa fé com que agia.

Enfim, tudo isto arquivado e arrancado, agora,  ao fundo do meu baú, assim numa espécie de exorcismo consciente, feito por escrito,  sem recorrer a qualquer clérigo de batina preta, crucifixo na mão, especialista em expulsar os demónios que a descolonização meteu no corpo e na alma de todo o retornado. Tudo sem apoio psicológico, nem reclamação do tão falado tratamento pós traumático.

Abílio Pereira de Carvalho/2013

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.